“Esta é a voz daquele que grita no deserto” (Mc 1,3)
Advento é um tempo que se revela como uma espécie de respiro, um tempo para distanciar-nos do conflito de ideias, interesses e especulações que acabam por alterar a tranquilidade e a paz de nosso interior. Este é um tempo sagrado e um tempo de silêncio, muito necessários para o momento em que vivemos. Um silêncio que não é isolamento, mas capacidade de escuta; algo assim como desconectar o auricular, no qual permanentemente soam as músicas “interesseiras”, para escutar as músicas ambientais; um silêncio que não é só ausência de palavras, mas ocasião para dar a possibilidade a palavras diferentes e novas; um silêncio que é superação do palavreado crônico que nos esvazia por dentro.
A “voz que grita no deserto” é a do profeta vestido pobremente, que nos prepara um coração compassivo e reconciliado. Aquele que saltou de alegria no ventre de sua mãe diante da voz da jovem de Nazaré, nos rompe, com sua voz, a surdez do coração e nos força a abrir os olhos para ver, de maneira nova e diferente, Aquele que sempre se aproxima.
O Batista é só uma voz; não é a Palavra. Mas não é uma voz qualquer, não é mais uma voz entre tantas outras; é a voz que faz a diferença: ela des-vela e re-vela. Des-vela a dureza do coração daqueles que não se abrem à novidade do Deus que “continuamente vem em sua direção”; revela a presença d’Aquele que com sua Palavra destrava a voz dos sem voz, ativando e despertando a dignidade escondida sob o peso das “vozes que desumanizam”, sejam elas políticas ou religiosas.
O tempo litúrgico do Advento nos possibilita renovar uma atitude tão escassa e tão necessária em nossa cultura: escuta das vozes frágeis do nosso entorno; são as vozes dos tristes, dos deprimidos, dos cansados e tantas outras vozes que se encontram nas margens sociais e religiosas. Essa escuta nos conduz à voz frágil d’Aquele menino Deus que sempre quer nascer onde há necessidade de mudança, de busca, de melhora, de um novo começo.
Mas o Advento também nos faz mais sensíveis para captar as vozes frágeis de nossa interioridade; elas querem se expressar, mas não encontram ambiente favorável, devido aos ruídos e sons estridentes que nos ensurdecem. Dentro de nós há muitos sentimentos reprimidos, experiências bloqueadas, vivências rejeitadas, pensamentos atrofiados... buscando uma oportunidade para se fazerem ouvir; são “vozes caladas”, “vozes que gritam no deserto interior”, procurando encontrar gretas de nossa existência por onde respirar. É preciso criar silêncio para ouvi-las, dialogar com elas e assim poder restabelecer um equilíbrio ecobiológico interior.
Há um rumor em nossa interioridade, e disso temos medo, pois desvelam nossa real identidade. O pensador Pascal dizia que “a infelicidade do ser humano vem de uma só coisa, que é não saber permanecer quieto em seu quarto”. Verdadeiramente há um rumor de vigor e de vida no coração, como a melodia da fonte na aridez do deserto, que é capaz de pacificar nosso espaço interior. Há um momento em que uma frágil voz sem palavras nos alcança no ponto mais vivo e original de nossa existência.
É o rumor que brota da provocação de uma palavra escutada como aquela de João Batista: “preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” É a estrada mesma da vida que passa pelos meandros do coração. Por ali transita o Espírito de Deus, que ora grita, ora sussurra, dependendo da nossa sintonia ou não com sua presença.
Sentados às margens das estradas ou de um riacho silencioso de nossas vidas, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar em direção às regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
Estamos mergulhados num mundo de vozes; um “vozerio” nos cerca: vozes que nos levam à morte, vozes que nos chamam à vida; vozes contaminadas pelo egoísmo, adulteradas pelo medo, deturpadas pela impureza, e vozes que são o eco do paraíso convidando para a festa, comunicando paz, convocando à comunhão... É possível que as vozes do egoísmo, do orgulho e da ambição tentem se disfarçar em voz do Batista, a fim de arrastar-nos para o vazio e a ruína.
Mas o Espírito não fala por ruídos, e sim pelo silêncio; não fala pela força dos pulmões, e sim pelo vento suave de sua voz inconfundível. Para escutá-la, requer-se interioridade e atenção aos sinais de sua presença: pode ser a voz de um irmão pedindo socorro; pode ser a linguagem de um acontecimento alegre ou triste; pode ser uma palavra lida ou proclamada; pode ser uma inspiração misteriosa captada no silêncio...
Sentimos a ressonância da voz do Espírito na oração, na atividade, ao ver um noticiário, ao dar um abraço, ao ler um livro, ao ouvir uma canção, ao contemplar um quadro, fazendo um passeio, escutando alguém que nos fala de sua vida...; sua presença ressoa na história e na imaginação convidando-nos a sonhar um futuro melhor; sua atuação ressoa nos encontros humanos, reconstruindo os laços rompidos; sob seu impulso ganham consistência, em cada um de nós, as atitudes que nos levam a viver com mais plenitude: compaixão, justiça, verdade, amor... No silencioso sussurro de Sua voz toda realidade interior fica abençoada: os sentimentos contraditórios, os dinamismos opostos... Ele “desce” para encontrar-nos e despertar nossa vida atrofiada. Com seu toque, uma identidade nova ressurge: não seremos mais estrangeiros, nem inimigos de nós mesmos. Sua presença dá calor e sabor à nossa existência.
Na arte do discernimento das vozes, o importante é, através da escuta interior, perceber de onde vem e para onde nos conduz cada voz que ressoa em nós. Se ela nos conduz para o outro, para o serviço, para o Reino...é clara manifestação da voz do Mestre. Isto dá uma profundidade especial ao nosso caminhar, nos desvela uma riqueza humana escondida em nosso interior, nos dá uma alma de poetas, capazes de dar nome ao mistério. “Endireitar as estradas interiores” é apaixonante, pois no situa no caminho de uma humanização mais verdadeira e profunda e dilata nosso coração. Somos advento; cuidemos, pois, de nossa vida interior!
Texto bíblico: Mc 1,1-8
Na oração: Espirituais somos todos, se deixarmos que, dentro de nós, o Espírito de Deus encontre espaço livre para mover-se, sussurrar e suscitar inquietações. Ao habitar-nos, o Espírito não nos invade, nem se impõe.
Se abrirmos espaço à sua presença, brota uma sadia convivência que potência o melhor em nós mesmos, sensibiliza nosso coração e abre os sentidos para que fiquem mais alertas e sintonizados com as surpresas que brotam da vida.
- Recordar (lembrar com o coração) dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da vivência do Advento.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Maria dará Cristo à luz em nós na medida em que nós formos sensíveis, como Cristo, por todos os necessitados deste mundo; na medida em que vivermos como aquele Cristo que se compadecia e se identificava com a desgraça alheia, que não podia contemplar uma aflição sem se comover, que deixava de comer ou de descansar, para poder atender a um doente, que não só se emocionava, mas também resolvia... A Mãe é aquela que deve ajudar-nos a encarnar esse Cristo vivo, sofrendo com os que sofrem, para que vivamos para os outros e não para nós mesmos.
Maria dará Cristo à luz em nós, na medida em que os pobres forem nossos prediletos; quando os pobres deste mundo forem atendidos com preferência, será sinal de que estamos na Igreja verdadeiramente messiânica; quando vivermos como Cristo, com as mãos e o coração abertos para os pobres, com uma simpatia visível por eles, partilhando a sua condição e solucionando a sua situação: na medida em que a nossa atividade for preferentemente, mas não exclusivamente, dedicada a eles, na medida em que chegarmos a eles com esperança e sem ressentimentos... Maria será verdadeiramente Mãe na medida em que nos ajudar a encarnar em nós, esse Cristo dos pobres.
Maria dará Cristo à luz em nós, na medida em que tratarmos de ser, como Cristo, humildes e pacientes; na medida em que refletirmos aquele estado de ânimo, de paz, domínio de si, fortaleza e serenidade; quando procedermos como Cristo diante dos juízes e dos acusadores, com silêncio, paciência e dignidade; quando soubermos perdoar como Ele perdoou; quando soubermos calar como Ele calou; quando não nos interessar o nosso próprio prestígio mas a glória do Pai e a felicidade dos irmãos; quando soubermos arriscar a nossa pele comportando-nos com valentia e audácia como Cristo; quando estiverem em jogo os interesses do Pai e dos irmãos; quando formos sinceros e verazes, como Cristo foi, diante de amigos e de inimigos, defendendo a verdade mesmo à custa da própria vida... Maria será verdadeiramente nossa Mãe, na medida em que nos ajudar a encarnar esse Cristo pobre e humilde.
Maria dará Cristo à luz em nós, na medida em que vivermos despreocupados de nós mesmos e preocupados com os outros, como Jesus, que nunca se preocupou consigo mesmo, com o tempo para comer, para dormir ou para descansar. Na medida em que formos como Cristo que se sacrificou sem queixas, sem lamentos, sem amarguras, sem ameaças, e, ao mesmo tempo, deu esperança e alento aos outros. Na medida em que amarmos como Cristo amou, inventando mil formas e maneiras para expressar esse amor, entregando a sua vida e o seu prestígio pelos seus «amigos»; se passarmos pela vida, como Jesus, «fazendo o bem a todos». Em que consiste a maternidade espiritual de Maria? Em que a Mãe nos ajuda a encarnar, gerar e dar à luz em nós, esse Cristo que amou até ao extremo.
Maria será para nós a verdadeira Mãe, se nos esforçarmos por ter a sua delicadeza fraterna: depois da anunciação, a Mãe vai rapidamente felicitar Isabel e ajudá-la nas tarefas domésticas dos dias pré-natais. Se copiarmos a sua delicadeza em Caná, atenta e preocupada por tudo, como se se tratasse da sua própria família; superdelicadeza a sua, na mesma cena, por não ter comentado com ninguém a falta de vinho, por não ter informado o anfitrião evitando um momento de rubor, e maior delicadeza ainda querendo ajeitar tudo sem que ninguém percebesse. Delicadeza também com o seu próprio Filho, por ter evitado, diante dos outros, uma impressão de situação de conflito pela resposta do Filho, quando disse aos empregados: «Façam o que Ele disser.» A sua delicadeza em Cafarnaum quando, em vez de entrar na casa e saudar seu Filho com orgulho materno, bate à porta e fica fora, esperando ser recebida pelo Filho...
Dessa maneira, Maria dá à luz Cristo, através de nós; nós cumprimos o nosso destino “materno”, e Cristo é cada vez “maior”.
Ignacio Larrañaga
In "O silêncio de Maria"
“O que vos digo, digo a todos: vigiai!” (Mc 13,37)
Gregório de Nissa afirma que “na vida cristã vamos de começo em começo, através de começos sem fim”. Re-começar contínuo, no qual nos colocamos sempre de novo em sintonia com Aquele que plenifica nossa existência, dando sentido e inspiração ao nosso modo de ser e viver.
Estamos re-começando mais um tempo litúrgico, sempre original e instigante; trata-se do Advento. No evangelho, indicado para este primeiro domingo, o apelo de Jesus (“vigiai”) poderia perfeitamente ser traduzida por “estejam atentos”, “estejam despertos”.
Por que essa insistência em viver despertos, atentos e lúcidos, como nos pede o tempo do Advento? Porque, como dizia Antony de Mello, a grande tragédia da vida não é tanto aquilo que sofremos, mas aquilo que perdemos. Perdemos muitas oportunidades porque a dispersão e a distração nos acompanham sempre. E isso é justamente o que pretende a espiritualidade do Advento: despertar.
De vez em quando, deveríamos ter a coragem de deixar ressoar em nós esta pergunta: “Você vive ou simplesmente sobrevive?”; pois o perigo de viver adormecidos ou de maneira superficial nos espreita continuamente. Aqui podemos recordar um texto de Henry Thoreau que se fez famoso graças ao filme “A sociedade dos poetas mortos”: “Fui aos bosques porque queria viver em plena consciência, queria viver a fundo e extrair toda a essência da vida; eliminar tudo o que não fosse a vida, para que, quando a minha morte chegasse, eu não descobrisse que não tinha vivido”.
Paulo também nos convida a despertar de nossa inconsciência para deixar-nos iluminar por Cristo e assim viver em plenitude, e não como mortos vivos: “Desperta, tu que estás dormindo, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará” (Ef 5,14)
Sabemos que o maior inimigo da atenção e da vigilância é a rotina e o modo de funcionar em “piloto automático”. A rotina tem a vantagem de facilitar as coisas e nos confere uma certa sensação de segurança: movemo-nos por caminhos trilhados nos quais tudo nos torna familiar; ela é como uma roda que, de vez em quando, nos move para aquilo que já sabemos, para o já conhecido. Os hábitos permitem que façamos muitas coisas sem precisar pensar: são feitas de uma maneira “in-sensata”, ou seja, sem sentido e sem discernimento.
Muitas de nossas rotinas são manias que herdamos, atmosferas que respiramos, condutas que imitamos, maneiras de ser que assumimos como próprias; nessa repetição do conhecido, vamos nos habituando a viver na apatia, na falta de sonho e de entusiasmo. A rotina nos encobre, nos disfarça, nos mascara e nos anula no costumeiro, na tradição, no hábito, na repetição.
Alguém já disse que a “rotina é o colchão da comodidade na qual a pessoa vai morrendo, pouco a pouco”. Há rotinas que se impõem a nós, sobretudo para que nada se modifique, para que tudo continue como sempre; com isso não arriscarmos ao novo e, sobretudo, atrofiamos nosso espírito aventureiro e criativo que nos sussurra outras brisas, que nos instiga a caminhar por paisagens desconhecidas e nos impulsiona para horizontes inspiradores.
A rotina nos instala no gesto mecânico, no movimento inconsciente, na vida sem alento, nas maneiras normóticas de agir, no vazio do estancamento e na vigília adormecida; ela nos converte em figueiras estéreis, nos seca por dentro, nos torna deserto, sem brilho nos olhos, sem vibração no coração, sem presença inspiradora em nosso mundo.
O Advento, como “primeiro movimento”, é sempre atenção, convite a estar desperto para “fazer novas todas as coisas”. Não é promover novidade superficial, mas recuperar o novo que sempre brota a partir de nosso ser mais profundo. O Advento é tempo litúrgico da criatividade; as rotinas nos alienam, a criatividade nos faz, nos rerefaz.
A atenção vigilante nos conecta com a vida, porque nos traz ao presente. E o presente é o único lugar da vida. Graças à atenção, vivemos na consciência, acolhendo tudo a partir da lucidez e amando tudo a partir da sabedoria; nós nos sintonizamos com a corrente da vida e passamos a habitar o momento presente, deixando-nos fluir com a vida mesma. E, em meio a qualquer atividade, devemos acostumar a nos perguntar: “estou completamente aqui?”
O cultivo da atenção tornará possível a saída progressiva do sono e da ignorância para poder viver na luz; tal prática continuada, não só fará com que saboreemos a vida, mas que reconheçamos e nos famíliarizemos com nossa verdadeira identidade: não somos a “onda” que emerge fazendo movimentos, mas o “oceano” de onde a onda surge. Ver isto é “estar despertos”.
Cada Advento nos mostra um cenário no qual tudo brota de novo, sem estridências nem espetáculos extravagantes. É o tempo do silêncio que vai gestando algo novo, pleno de vida e de sabor; tempo que nos move a reestreiar nossa vida; para isso é preciso destravar nossos sentidos para olhar, escutar, sentir, tocar, saborear tudo como se fosse a primeira vez.
À luz do evangelho deste domingo, vemos que o tempo da ausência do dono da casa que partiu em viagem não é um tempo morto, mas um tempo de intensa gestação. Não é uma espera vazia, angustiante e ansiosa, provocadora de medo, mas uma espera centrada no Senhor que vem e centrada na responsabilidade que nos foi confiada: serviço.
Muitos cristãos perdem a intensidade da espera; e aqueles que persistem na espera vão aprendendo a paciência da espera, mobilizando outros recursos interiores. A vigilância consiste em viver esperando o inesperado e o surpreendente. As comunidades cristãs precisam fortalecer uma pedagogia da espera. Sabem que o Senhor chega de forma surpreendente. A espera é sempre ativa, atenta aos sinais dos tempos e aos clamores da vida; ela busca expandir-se, pois aguarda “o novo céu e a nova terra”.
O Advento é um tempo de oportunidades únicas; e ele está carregado de sinais, elementos fora do comum, pessoas e acontecimentos pelos quais Deus interpela nossa liberdade e frente aos quais é preciso tomar uma atitude. Estamos diante daquilo que podemos chamar de “Kairós” (tempo oportuno, carregado de inspiração).
Se excepcionais podem ser as pessoas, os lugares, as relações, as habilidades, etc... excepcional também pode ser um determinado tempo, que não depende de sua durabilidade, mas o quanto é carregado de sentido e de presença. É um tempo qualitativamente diferente e denso. É um tempo de graça, propício para o reencontro, para avançar, para passar a uma nova etapa da vida. É preciso aproveitar esta oportunidade única.
Oxalá, neste Advento esperemos o Cristo e saiamos ao seu encontro. E contagiemos os outros com nossa esperança. Essa é a disposição de uma Igreja em saída e que não aguarda em uma “sala de espera”.
Texto bíblico: Mc 13,33-37
Na oração: Diante do Senhor, que continuamente está vindo em nossa direção, podemos nos perguntar: “minha vida, continua adormecida?
- Como seguidores(as) de Jesus, somos homens e mulheres que podemos despertar o mundo?
- O que estamos vislumbrando no nosso horizonte pessoal, eclesial, social, familiar...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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“...todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fezestes”
Rei, título inapropriado para Aquele que tocou leprosos, que preferiu a companhia dos excluídos e não dos poderosos do povo, que lavou os pés dos seus discípulos, que não tinha riqueza nem poder... O senhorio de Jesus foi a do amor incondicional, do compromisso com os mais pobres e sofredores, da liberdade e da justiça, da solidariedade e da misericórdia... Com sua palavra e sua vida Ele afirmou que “não veio para ser servido, mas para servir”. Por isso, assumiu uma posição crítica frente a todo poder desumanizador.
A festa de “Cristo Rei”, que encerra o Ano Litúrgico, pode ser ocasião propícia para “transgredir” nossa concepção de “rei” e “reinado”, e evitar um triunfalismo religioso, pura imitação dos reis deste mundo que vivem às custas da exploração dos seus súditos.
Jesus nunca se proclamou rei; o que Ele fez foi colocar-se a serviço total do Reino, de forma que este foi o centro mesmo de sua pregação e de sua vida, a Causa pela qual estava apaixonado e pela qual deu sua vida. Importa, pois, honrar a verdadeira identidade de Jesus: Ele não foi rei, nem quis ser nunca, por mais que alguns cristãos creem que chamando-o assim prestam-lhe as devidas honras. A melhor honra que devemos prestar a Jesus é prolongar seu modo de ser e de viver. É preciso voltar a Jesus e sua Causa.
Se Jesus não foi rei historicamente, nem se chamou rei, nem deixou que lhe chamasse assim, recusou e se retirou quando queriam fazê-lo rei, tem sentido que nós o aclamemos com esse título? Por quê?
Jesus é Rei porque deixa transparecer sua “realeza”: o que é mais real, mais humano e divino, a sua verdade, seu ser verdadeiro... no mais profundo de si mesmo. Realeza que se visibilizava no encontro com o outro. A partir de seu ser verdadeiro, Jesus destravava e ativava a realeza escondida em cada um.
Este é o sentido profundo do título: ser Rei sem tomar o poder, sem exercê-lo com a força das armas, sem a pressão da justiça legal, sem prestígio, sem riqueza... Esta é a tarefa da nova humanidade, a promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade e da justiça, da fraternidade e não violência..., para que todos sejam reis, no sentido radical da palavra.
Segundo o relato de Mateus, quando chegar o momento supremo, a hora da verdade definitiva, a única coisa que ficará de pé, o que somente será levado em conta como critério de salvação ou perdição, não vai ser nem a piedade, nem a religiosidade, nem as práticas espirituais, nem a fé, nem mesmo o que cada pessoa tiver feito ou deixado de fazer para com Deus; o que vai ser considerado é apenas uma coisa, a saber: o que cada um tiver feito ou deixado de fazer para com os seres humanos.
A fundamentação está no fato de que Jesus se identifica com cada ser humano, de maneira especial com aquele que mais sofre, vítima da violência, da exclusão, da pobreza, da humilhação... Essa identificação e essa fusão de Jesus com os humanos (“foi a mim que o fizestes”) é tão forte e tão decisiva que, no momento do encontro definitivo com Ele, o critério para entrar no Reino não é o que cada pessoa fez ou deixou de fazer “para” Deus, mas o que ela fez ou deixou de fazer “para” os seus semelhantes que cruzaram o seu caminho e que clamaram por uma presença solidária e compassiva.
Na parábola do “juízo final” não é casual que os casos ali mencionados são as situações mais baixas, mais humilhantes e as que mais detestamos, de acordo com o que neste mundo se considera necessário para ser uma pessoa de sucesso e que goza de uma vida cômoda e digna: a comida, o vestuário, a saúde, a liberdade e a legalidade de quem não é um estrangeiro ou um imigrante “sem documentos”. Essa lista de situações extremas refere-se à realidade de sofrimento e exclusão. E Jesus assume como sua a dor de cada ser humano, pois, mediante sua Encarnação, Ele se identificou e se fundiu com o mais basicamente humano, com aquilo que é comum a todos os seres humanos, sem nenhuma distinção.
Toda parábola desperta ressonância e causa impacto no nosso ser profundo; não é um relato periférico e neutro; escutar ou ler uma parábola é sentir-se implicado nela ou, em outras palavras, toda parábola deixa transparecer nossa real identidade; por isso, a parábola do “juízo final” pode também ser lida em “chave de interioridade”: o que em mim está excluído, faminto, desamparado, exilado, preso... e que precisa ser integrado e iluminado?
Mas a luz da parábola desvela nosso eu interior e deixa transparecer também nossos pontos nutrientes, iluminantes... que serão fonte de salvação para as dimensões do nosso ser profundo que ainda permanecem na sombra da não aceitação.
Por outro lado, precisamos deixar ressoar em nosso “eu profundo” as palavras duras do Rei Eterno: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Centrados em nós mesmos e separados dos outros, vamos alimentando uma espécie de ego (força diabólica: força que divide). Todo “ego” é possessivo e manifesta-se como um desejo insaciável de acumular, possuir, não compartilhar... O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, acontecimentos e natureza. Ele compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pela riqueza. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Esse ego centrado em si próprio não confia em ninguém a não ser em si mesmo; ele não ama ninguém e quando “ama” é para atender apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros, vivendo uma situação infernal.
Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida?
O primeiro passo será desvelar e desmascará-lo com todas as suas maquinações e duplicidades. Só uma pessoa esvaziada de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade. O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo a parábola deste domingo, a pessoa “torna-se bendita de meu Pai” na entrega e no descentramento. Porque só assim deixa transparecer a realeza original, aquela que se identifica com a realeza d’Aquele que viveu para servir.
Só nos fazemos conscientes de nossa realeza quando compreendemos nossa verdade mais profunda. Até que isso não ocorra, viveremos como mendigos, tratando de apropriar-nos e de identificar-nos com tudo aquilo que possa conferir uma certa sensação de identidade e de segurança. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto “mendigo” se descobre “rei”. Só na medida em que nos esvaziamos de nossos impulsos egóicos, fazemo-nos solidários com a fragilidade e, o que é mais profundo, nos fundimos com a fragilidade dos outros.
A salvação da humanidade está, pois, em ajudar aos excluídos do mundo a viver uma vida mais humana e digna. A perdição, pelo contrário, está na indiferença diante do sofrimento. Este é o grito de Jesus a toda a humanidade.
Texto bíblico: Mt. 25,31-46
Na oração: O Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus, o motivo de seus milagres, a razão de ser de sua fidelidade até a morte, a coroa de sua ressurreição. Quê é para mim o Reino de Deus? Está também no centro de minha vida? É “minha Causa” como foi a de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Fiquei com medo e enterrei o teu talento no chão” (Mt 25,25)
A liturgia deste domingo nos propõe uma parábola que pode ser facilmente mal interpretada; ou pior ainda, fomentar a auto-autocobrança e o perfeccionismo. E, como consequência, os sentimentos de culpa, de impotência, de fracasso...
No campo específico da espiritualidade cristã, uma leitura deturpada da parábola dos “talentos” pode conduzir a uma religiosidade perigosa por vários motivos: supõe a imagem de um Deus como um patrão que exige um cumprimento das suas ordens até os mínimos detalhes, sem admitir nenhum fracasso; fomenta a ideia do mérito e, com isso, uma religião mercantilista; alimenta um perfeccionismo – busca de um “ideal de perfeição” -, que gera muito sofrimento e farisaísmo; estimula a competitividade para ver quem consegue um “prêmio maior”... Em definitiva, aqui nos encontramos diante de uma parábola potencialmente perigosa.
Todos nós temos uma tendência a alimentar o perfeccionismo e a leitura da parábola dos talentos só viria confirmar essa tendência. De fato, o conceito de perfeição cristaliza-se em nós desde a infância, a partir de experiências não integradas, de sentimentos de culpabilidade, e que acabam nos identificando, no plano pessoal, como não ter defeitos, não ter fragilidades, não ter nenhuma falha ou pecado. Trata-se de um modo fechado de viver dentro do próprio eu orgulhoso, que exige o máximo esforço para não falhar em ponto algum, uma vez que o “perfeccionista” está convencido de que somente será amado por Deus e pelos outros se for perfeito. A grave consequência disso é que estaríamos pervertendo a mensagem de Jesus, centrada radicalmente na gratuidade, na compaixão e no amor.
Custa-nos reconhecer Jesus como autor da “parábola dos talentos. Mas, em todo caso, não podemos perder de vista que se trata de uma parábola, e que a leitura tampouco pode ser literal. Como ler esta parábola para poder recuperar sua mensagem genuína e, ao mesmo tempo, evitar os riscos que o próprio relato deixa transparecer?
Em primeiro lugar, coerente com a própria mensagem evangélica, só nos cabe ler a parábola como palavra de sabedoria e não como código moral; deve ser entendida a partir da gratuidade e não a partir da ideia do mérito e da recompensa. Tudo é dom e somos felizes na medida em que permitimos que esse dom se manifeste em e através de nós.
Também é importante que levemos em conta a situação concreta em que Jesus vivia quando falava em parábolas. Ele viveu situações muito conflitivas e de enfrentamento com os fariseus, os sumos sacerdotes, os mestres da lei. Mateus coloca esta parábola dos talentos em um momento de máxima tensão e enfrentamento de Jesus com os fariseus; concretamente, com o “Deus” dos fariseus, que era um Deus terrível, ameaçante e justiceiro. Aqui, nesta instigante parábola, Jesus desmascara a falsa imagem de Deus dos fariseus, que torna a vida pesada e marcada pelo medo. É como se Ele dissesse: “Meu Pai não é assim; Ele é fonte de amor, de misericórdia e só deseja que as pessoas vivam felizes, sem medo”.
Nesse sentido, é sumamente útil aprofundar e conhecer o verdadeiro sentido da parábola dos talentos. Normalmente, costuma-se explicar esta parábola dizendo que Deus dá a cada pessoa uma quantidade determinada de talentos, divinos e humanos, dos quais terá de prestar contas a Ele, até o último centavo, no dia do Juízo Final. Quando se interpreta a parábola dessa maneira, o Deus que aí aparece é uma ameaça insuportável; ao considerar a parábola como uma exortação à uma “vida perfeita”, falsifica-se o sentido autêntico da mesma. O que está em questão aqui é a “imagem” de Deus que todos trazemos.
O indivíduo que recebeu um só talento está convencido de que o “senhor”, ou seja, Deus, é “duro”, pois “colhe onde não semeou e ajunta onde não espalhou”. Esse indivíduo tem uma ideia terrível de Deus. E por isso, como é natural, “tem medo”; e o medo o leva a “esconder o talento debaixo da terra”. Isso, precisamente, foi sua perdição. O medo paralisa, ou seja, torna as pessoas estéreis. No fundo, Jesus está dizendo o seguinte: “o Deus que ameaça com a exigência da prestação de contas até o último centavo, é um Deus que bloqueia e anula as pessoas, os grupos, as comunidades”. Por isso, é urgente acabar com a imagem do Deus que ameaça, que não liberta nem cura, que nos amarra e não nos deixa viver.
De fato, a presença de Deus na vida e na história de muitas pessoas é vivida secretamente sob as vestes do temor e do medo. Um “Deus” que a todos nós pedirá contas no juízo, onde teremos de responder pelo mau uso de nossos dons; um “Deus” que nos castiga com desgraças, por causa de nossos fracassos; um “Deus” interesseiro, um senhor severo que impõe obrigações duras e dificulta nossa entrada no banquete; um “deus-patrão” que nos prende com contratos e cobranças; um “Deus” que é um constante perigo, causador do Grande Medo que nos paralisa.
Crer em um Deus que pede conta até o último centavo é o mesmo que crer em um juiz justiceiro que torna a vida amarga e pesada. Sem a superação cotidiana dos medos, nossa experiência de Deus estará comprometida, perderá sua força inovadora e nos fará menos humanos.
Para relacionar-nos humanamente com o Deus que Jesus nos revelou, o mais urgente que devemos fazer é quebrar as “falsas imagens” d’Ele que carregamos em nossas consciências, em nossa intimidade mais secreta. E a primeira e principal imagem falsa é que Deus é uma ameaça da qual devemos nos proteger.
Deus é fonte da Vida, ou melhor, o próprio Dom, o “talento” que se dá generosamente em tudo. Ao conectar com nossa verdadeira identidade, nós nos descobrimos n’Ele, não como uma presença separada, mas como nosso núcleo mais íntimo e profundo.
Essa descoberta é a fonte de nossa ação; estamos permitindo que o “talento” – o Dom, a Graça, Deus..., possa viver em nós; deixar “Deus ser Deus em nossa vida”. Tal vivência sempre dará fruto abundante. Mas o fruto não é algo conquistado, que antes nos faltara e nos é dado agora em forma de prêmio ou recompensa – para engordar o ego -; o “prêmio” não é outro que a descoberta daquilo que somos e o prazer de viver isso. O “talento” que nos é presenteado é a descoberta da plenitude que sempre fomos.
Finalmente, aquele que não faz frutificar o talento fala também de nós mesmos, quando permanecemos na ignorância de quem somos e, desse modo, “perdemos” a vida, fechados – o talento enterrado – em nossa pequena couraça narcisista. Isso significa não deixar o talento expandir e permaneceremos nas trevas de nós mesmos, perdidos na confusão e no sofrimento.
Mais uma vez, não se trata de uma ameaça e, menos ainda, de um castigo: é um apelo que nos chama a despertar, para que saiamos das crenças tóxicas que envenenam a mente e o coração, não nos deixam amadurecer no nível humano e espiritual e nos privam do prazer de viver o Dom (Talento) que nos habita.
Texto bíblico: Mt 25,14-30
Na oração: No interior de cada um, Deus está chamando, está convidando a que ponha em movimento toda a capacidade de admiração e quer ensinar a ler e interpretar Sua presença em todas as coisas.
- pedir para experimentar, desde já, a presença do Senhor tal como Ele é, evitando todas as suas falsas imagens;
diante de sua presença cada um deve sentir-se acolhido, desafiado e com uma nobre missão a realizar.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As previdentes levaram vasilhas com azeite junto com as lâmpadas” (Mt 25,4)
Os textos destes últimos domingos do ano litúrgico nos convidam a velar, a estar preparados, a viver despertos. Deus não nos espera no final do caminho para nos submeter a um juízo; Ele está dentro de nós todos os instantes de nossa vida, inspirando-nos, para que possamos viver com mais plenitude e sentido. Interpretar a parábola deste domingo(32º Dom TC) no sentido de que devemos estar preparados para o dia da morte é falsificar o evangelho. Esperar passivamente uma vinda futura de Jesus não tem sentido, pois Ele já disse a seus discípulos: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”.
A parábola não está centrada no fim, mas na inutilidade de uma espera que não é acompanhada de uma atitude de amor e de serviço. As lâmpadas devem estar sempre acesas; se esperamos para prepará-las no último momento, perderemos a oportunidade de entrar para a festa de casamento.
A ideia que muitas vezes temos de uma vida futura esvazia a vida presente até o ponto de reduzi-la a uma incômoda “sala de espera”. A preocupação pelo “mais além” nos impede assumir com mais intensidade o tempo que nos cabe viver. A vida presente tem pleno sentido por si mesma. O que projetamos para o futuro já está acontecendo aqui e agora, e está ao nosso alcance; aqui e agora podemos viver a eternidade, já que podemos nos conectar com o que há de Deus em nós; aqui e agora podemos alcançar nossa plenitude, porque sendo morada de Deus, temos tudo ao alcance da mão.
A “chave de leitura” da parábola “das dez virgens” está na falta de azeite para que as lâmpadas possam permanecer acesas. O relato é tirado da vida cotidiana. Depois de um ano ou mais de noivado, celebrava-se a festa de casamento, que consistia em conduzir a noiva à casa do noivo, onde acontecia o banquete. Esta cerimônia não tinha um caráter religioso. O noivo, acompanhado de seus amigos e parentes, ia à casa da noiva para buscá-la e conduzi-la à sua própria casa; na casa da noiva, encontravam-se suas amigas que a acompanhariam no trajeto e participariam da festa. Todos estes rituais começavam com o pôr-do-sol e avançavam noite adentro, daí a necessidade das lâmpadas para poder caminhar.
A importância do relato não está no noivo, nem na noiva, nem sequem nas acompanhantes. O que o relato destaca é a luz. A luz é mais importante porque o que determina a entrada no banquete é que as jovens tenham as lâmpadas acesas. Uma acompanhante sem luz não tinha como fazer parte no cortejo nupcial. Pois bem, para que uma lamparina consiga iluminar é preciso ter azeite. Aqui está o ponto chave. O importante é a luz, mas o que é preciso para alimentá-la é o azeite.
Que é o azeite que alimenta a lamparina? São as reservas insondáveis de potencialidades criativas, de recursos inspiradores, de dinamismos vitais, de forças latentes, de energias sadias, de desejos oblativos... presentes nas profundezas do coração humano, e que o impulsionam a viver em sintonia com tudo o que acontece ao seu redor; o azeite é constituído pelas riquezas do próprio ser, as beatitudes originais, as intuições, os valores... que alimentam a autonomia, a autoria, a criatividade, a iniciativa, o espírito de busca, a capacidade de sonhar... Trata-se do “tesouro do ser”, conservado em sua mensagem essencial, e que pode tornar-se a energia que alimenta a luz da vida, a sabedoria da própria existência; o azeite é tudo aquilo que é nutriente, fecundo, iluminante... e que se expressa como contínua fonte de renovação; azeite é vida interior expansiva que se revela e que se consome nos encontros, na interação e na comunhão com os outros...; em resumo, azeite é o que há de mais divino no interior de cada um, que precisa ser descoberto, reconhecido e ativado para tornar-se luz.
No entanto, só quem vive a partir das raízes do próprio ser, só quem tem acesso à própria interioridade, descobre a presença do azeite que pode ser ativado para dar um novo significado e sentido à própria vida. É isso que a parábola do evangelho de hoje nos alerta: é preciso estar desperto e sintonizado com o azeite interior para poder alimentar a luz da vida e corresponder às vozes surpreendentes que vão surgindo.
“No meio da noite ouviu-se um grito: eis que chega o noivo! Saí ao seu encontro”.
É uma convocação urgente a sair do sono da distração e da trivialidade que talvez nos tem aprisionado, durante muito tempo, àquilo que é acessório e que nos provoca a viver à espera do essencial, atraídos por um impulso que nos move por dentro, ou seja, o desejo de vida plena.
Com os distraídos não se pode ir muito longe; dizendo melhor; distraídos são que vivem do momento e não pensam no depois. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pelas luzes artificiais, os distraídos perdem a direção da fonte provedora de azeite em seu interior; dormem e acordam sem luz em suas vidas.. Quem anda distraído, disperso e surfando na superfície de si mesmo, acaba perdendo as grandes oportunidades que a vida lhe oferece. Por isso, ser “sensato” é viver com sentido, atento e desperto às surpresas da vida. Para quem está desperto, sua vida interior torna-se uma fonte inesgotável de energia, de dinamismo e criatividade. Assim se entende porque as jovens prudentes não compartilhem o azeite com as imprudentes. Não se trata de egoísmo: é que a lâmpada não pode arder com o azeite do outro. A chama, à qual se refere a parábola, não pode ser acesa com o azeite comprado ou emprestado.
Sabemos que o azeite só ilumina quando se consome. Nossa vida revela pleno sentido e alcança seu fim quando desaparecemos, consumindo-nos no serviço aos outros. Quando a chama da vida está acesa, cresce em nós a consciência de que somos luz na medida em que nos gastamos na nobre missão de iluminar nosso entorno, até chegarmos a ser cera derretida.
Vivemos imersos num oceano de luz; carregamos dentro a força da luz. Ela sempre está aí, disponível; basta abrir-nos a ela com a disposição de acolhê-la e de fazer as transformações que ela inspira. A Luz é força fecundante, princípio ativo, condição indispensável para que haja vida. Somos luz quando expandimos nosso verdadeiro ser, ou seja, quando transcendemos e vamos mais além, desbloqueando as ricas possibilidades e recursos presentes em nosso interior. O que há de luz em nosso interior pode chegar aos outros através das obras. Toda ação realizada com amor e compaixão, é luz.
Encantam-nos os cristãos antenados que, cada dia, alimentam sua fé, sua esperança com pequenas coisas, com pequenos detalhes e gestos de amor carregados de luz; cada dia, aprofundam um pouco mais na experiência do Evangelho, mantendo sempre suas lâmpadas acesas, atentos à passagem e às pegadas de Deus por suas vidas; e, sobretudo, carregam sempre reservas de azeite para acolher com alegria a chegada surpresa d’Aquele que sempre está vindo ao seu encontro.
Encantam-nos os cristãos comprometidos que sabem que o azeite se consome, a fé se debilita, a esperança se apaga e amor atrofia quando não são alimentados com o azeite sempre novo em reserva nos seus corações.
Texto bíblico: Mt 25,1-13
Na oração: Dentro de ti deves descobrir o azeite. Se o descobres, dará luz que alumiará teus passos. Essa chama, se é autêntica, não pode se ocultar, pois iluminará também os outros, ativando neles a luz ainda escondida.
Tens que descobrir teu próprio azeite; ninguém pode te emprestá-lo, porque é tua própria vida.
Toda a vida se move de dentro para fora. Azeite que se consome na nobre missão de iluminar.
- Qual é o “azeite original” de teu interior, que inspira tua vida e te move a ser presença iluminante?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus...” (Mt 5,12)
No dia de Finados, fazemos memória e nos unimos a todas aquelas pessoas cujos rostos estão gravados em nossa mente e coração, pois foram presenças que nos sustentaram, nos confortaram, nos animaram e nos impulsionaram. E podemos expressar a confiança profunda de que a vida é conduzida secretamente a um Porto de Amor definitivo, e todo pranto, impotência e fragilidade serão abraçados e sanados n’Ele.
Há tanto que agradecer a estas pessoas que, como silencioso fermento, fizeram história com Deus no interior de nossa pobre humanidade. Foram presenças inspiradoras que melhoraram uma parte do mundo e nossa gratidão as acompanha. Ditosos eles e elas, e ditosos também nós porque, na comunhão com aqueles(as) que já vivem a páscoa definitiva, somos movidos a seguir seus passos pelo caminho da vida, para sermos dispensadores humildes de felicidade, compaixão, mansidão, famintos e sedentos de justiça, de paz.
Com a morte começa a vida para sempre, no coração do Deus amor. E se a morte é capaz de nos privar do dom da vida, o “amor tem poder para nos devolvê-la”, nos afirma o bispo Balduino de Cantebery.
Ao falar da morte sempre nos sentimos impotentes, pois ela nos ultrapassa. Sabemos de sua existência, mas muitas vezes nos dá medo. E o medo da morte impede viver adequadamente o presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a nos travar profundamente e alimentar uma angústia a ponto de impedir-nos de viver a vida com sentido, qualidade e prazer.
Nossa sociedade tende a negar a morte, afastando-a dos nossos ambientes cotidianos, tornando-a invisível; procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la; preferimos não falar dela e, mesmo quando falamos desta realidade última, a ela nos referimos com temor e tremor. O pânico e a negação são nosso pão de cada dia: a compulsão por manter-nos – ou ao menos parecer-nos – jovem, o culto à saúde e à vitalidade, a incapacidade de aceitar a fragilidade e a finitude de nossa natureza humana, deixam transparecer o medo de nos deparar com a morte.
A morte nos golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de nossa experiência humana; ela desnuda e desvela a precariedade de nossa existência. Com nada chegamos ao mundo e sem nada partiremos dele. E a realidade é que sem aceitação da morte continuamos presos à onipotência infantil que nos faz fantasiar de seres imortais. E, no entanto, a morte está aí, na volta da esquina; por ser algo seguro e certo, a morte é realidade freqüente de distância, mistério e silêncio; ela nos faz cruzar o umbral do desconhecido, do qual é impossível dar um passo atrás; ficamos paralisados frente ao desconhecido e ao irreversível. A morte põe fim ao nosso estado de caminhantes neste mundo, tempo no qual fomos nos amadurecendo e crescendo.
A experiência cristã, por outro lado, nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Vida sem morte é irresponsável. Tira a seriedade da vida, que lhe é dada pela morte. Na verdade, a morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria vida: as perdas, os sonhos não realizados, os riscos que não enfrentamos por medo... É de todos conhecido o refrão: “A morte menos temida dá mais vida”.
Superar o medo da morte é um processo longo, complexo, mas para o cristão constitui uma experiência religiosa muito profunda, que o desafia a aprofundar na consciência de si mesmo e em sua capacidade de confiar em Deus. Vencer o medo da morte é reconhecer que a vida sempre é um dom, não o resultado de nosso esforço; e que, por isso mesmo, o essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.
Não é a morte aquela que deve dar sentido à nossa vida, mas ao contrário, só aprendendo a viver é que se aprende a morrer. Mesmo que nos restasse apenas um segundo de vida, faríamos muito mal em pensar na morte. Seria muito mais positivo viver plenamente esse segundo. A fé cristã não é masoquista ou sádica quando nos ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade para com a própria vida. O teólogo Soren Kierkegaard afirma que “só a fé proporciona ao ser humano o valor e a audácia necessárias para olhar a morte de frente”. Sem medos, sabendo que o Deus da vida, acolhe com amor e ternura, àqueles(as) que são “aspirados(as)” para dentro de suas entranhas misericordiosas.
O diretor japonês Akira Kurosawa retrata, de maneira original, questão da morte, em seu filme Ikiru, uma obra-prima de 1952. Trata-se da história de Watanabe, um humilde burocrata japonês que descobre ter câncer de estômago e apenas mais alguns meses de vida. O câncer serve de experiência reveladora para este homem, que antes tinha vivido uma vida tão limitada e atrofiada que seus próprios funcionários o apelidaram de “a múmia”. Depois de descobrir o diagnóstico, ele falta ao trabalho pela primeira vez em 30 anos, retira uma grande quantia de dinheiro de sua conta-corrente e tenta voltar à vida em vibrantes boates japonesas.
No meio desse ambiente devasso, ele encontra inesperadamente uma ex-funcionária que havia pedido demissão de seu escritório porque o emprego era tedioso demais: ela queria viver. Fascinado por sua vitalidade e energia, ele a segue e implora para que ela o ensine como viver. Ela lhe disse apenas que odiava seu antigo trabalho porque se tratava de uma burocracia sem sentido. No novo emprego, em que faz bonecas numa fábrica de brinquedos, ela se sente inspirada e motivada a viver a partir da ideia de poder levar felicidade a muitas crianças.
Quando o burocrata revela a ela seu câncer e a proximidade da morte, ela fica horrorizada e corre para longe, emitindo apenas uma única mensagem por sobre os ombros: “Faça alguma coisa”. Watanabe retorna, transformado, ao seu trabalho, recusa-se a ser engessado pelo ritual burocrático, quebra todas as regras e dedica o restante da vida à construção de um parque infantil, que seria aproveitado por muitas crianças, durante muitos anos. Na última cena, Watanabe, próximo da morte, está sentado em um balanço no parque. Apesar da nevasca, ele está sereno e se aproxima da morte com uma tranqüilidade impressionante.
De fato, aqueles que vivem com mais intensidade são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros. Por isso, para os cristãos, a morte sempre se refere à Vida e à vida; à Vida com maiúscula, junto a Deus e para sempre (que chamamos Vida Eterna), e a vida de todos os dias, na qual somos chamados a ser testemunhas do amor de Deus a todos os homens e mulheres deste mundo; uma vida de serviço, de compromisso, de entrega generosa para construir um mundo melhor; uma vida com sentido, para que, quando cruzar o umbral da porta desta vida, de verdade encontremos plenamente o que tanto buscávamos: o amor, a paz e o rosto bondoso de um Deus que é Amor.
A vida se expande quando compartilhada e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. E a morte é o instante da expansão plena para aquele que soube dar um sentido inspirador à sua existência. Podemos afirmar, então, com muita propriedade, que todos morremos para o interior da Vida.
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração: A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos auto-referentes na busca de segurança e imortalidade, para encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida de outros.
- Como você se situa diante da morte: medo? serenidade? certeza de poder mergulhar numa Vida maior?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Bem-aventurados sois vós...” (Mt 5,11)
Todo ser humano deseja ser feliz, e o desejo de felicidade é o dinamismo mais profundo que toda pessoa traz inscrita no íntimo do seu ser. Em outras palavras, a aspiração primeira que nos habita é a “alegria de viver”. Por isso, atentar contra a felicidade de viver é a agressão mais grave que se pode cometer contra o ser humano.
No entanto, na experiência de fé de muitas pessoas, a imagem de “Deus” não está associada à busca da “felicidade”. De fato, são muitos os que veem em Deus um autêntico rival da própria felicidade, pois costumam relacionar Deus com a proibição de muitas coisas que lhes dão prazer e lhes fazem felizes, ou com a obrigação de fazer outras coisas que lhes são pesadas e desagradáveis. E, sobretudo, para muitos, “Deus” é uma ameaça, uma proibição constante, uma censura, um juiz implacável com o código de leis nas mãos... enfim, uma carga pesada que complica a vida, tornando-a sem sabor e sem sentido.
Além disso, muita gente vê em Deus a imposição de verdades que não compreende, a limitação da própria liberdade, a necessidade de submeter-se a poderes e autoridades que lhe causam rejeição...
E, para culminar, são muitos aqueles cuja experiência de fé é vivida de maneira negativa, alimentando culpas, acentuando os escrúpulos, fomentando divisões e conflitos internos, comportamentos de caráter obsessivo, práticas piedosas carregadas de moralismo e expiação..., e outras patologias.
É evidente que um “Deus” assim gera, nas pessoas, sentimentos de culpa, de insegurança e de medo.
Podemos, então, compreender perfeitamente porque muitas pessoas prescindem de Deus em suas vidas, inclusive, recusam abertamente tudo o que se refere a Deus, à religião e aos seus representantes.
Um “Deus” que é percebido e sentido como um problema, como uma presença que entra em conflito com nossa felicidade, por mais que nos digam que Ele é bom, que nos ama e que é Pai, é e será sempre um “deus” inaceitável e até insuportável. Um Deus assim não tem e nem pode ter relação alguma com a aspiração maior que carregamos dentro de nós: o desejo de sermos felizes na vida.
Não é fácil passar de uma espiritualidade que fez do sofrimento e do sacrifício um lugar de redenção, de santidade, de predileção por parte de Deus, a uma espiritualidade que integra a busca da felicidade, não só como um direito humano, senão como um sinal do Reino.
Falar de felicidade nos leva necessariamente a nos perguntar se é possível ser felizes em um mundo cheio de dores, injustiças, mortes prematuras, solidão, vida sem sentido... No entanto, como seres humanos não podemos renunciar à busca da felicidade. O importante é que não vivamos esta busca de uma maneira solitária, nem que nossa busca seja à custa dos outros ou à margem das grandes maiorias sofredoras. A isso não se pode chamar felicidade.
A felicidade é a busca fundamental do ser humano, o sonho da humanidade desde o começo da história. O difícil é ter sabedoria para poder reconhecer os caminhos que nos conduzem a ela. Nesse sentido, a liturgia da festa de Todos os Santos e Santas vem nos indicar este caminho, ao apresentar o texto das Bem-aventuranças como um programa para viver a felicidade; e o motivo primeiro é porque todas elas são, na verdade, o caminho da santidade universal (acima e além de toda religião, pois elas são simples e profundamente humanas). As Bem-aventuranças são como o mapa de navegação para nossa vida; são o horizonte de sentido e o ambiente favorável para nossa santificação, entendida como empenho para viver com mais plenitude, segundo o querer de Deus.
A primeira “canonização”, pois, teve lugar quando Jesus, num determinado dia, subiu à montanha e com grande solenidade declarou felizes os pobres, os aflitos por causa do Reino, os mansos que não recorrem à violência, os que tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, os que não tem segundas-intenções no coração, os que trabalham em favor da paz, os perseguidos por causa da justiça. Todos eles(as) são declarados felizes porque são os que mais se parecem com Deus, ou seja, deixam transparecer em suas vidas a santidade d’Ele. E a felicidade está justamente na vivência do chamado universal à santidade.
A santidade é, pois, um dom recebido de Deus, que alimenta na pessoa o desejo e a disposição de “sair de si mesma” para viver a experiência do amor na relação com o mesmo Deus, no encontro com os outros e no cuidado e proteção da Criação.
“Viver a partir da santidade de Deus” representa a melhor definição da santidade cristã: reconhecer-nos como quem recebe tudo de Deus, deixar-nos amar e guiar por Ele, assemelhar-nos a Ele para fazer carne viva em nós os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem com as pessoas.
Em outras palavras, a santidade significa viver o divino que há em nós. Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta da nossa verdadeira identidade. Todos somos santos(as), porque nosso verdadeiro ser é o que há de Deus em nós; embora a imensa maioria das pessoas não tem consciência disso ainda, não podemos deixar de manifestar o que somos. Somos santos(as) pelo que Deus é em nós, não pelo que nós somos para Deus. Para Jesus, é santa a pessoa que descobre o amor que chega até ela sem mérito algum de sua parte, mas deixa-se envolver por este amor expansivo e passa a viver uma presença amorosa.
Na festa de Todos os Santos e Santas somos convidados a deixar semear na terra de nossa vida o anúncio mais impressionante de felicidade que Jesus nos faz. Como não ficar maravilhados diante das bem-aventuranças e deixar que cada uma delas nos desvele e nos fale d’Ele? De fato, elas são o autoretrato de Jesus; antes de proclamá-las, Ele as viveu na radicalidade.
As bem-aventuranças constituem a carta magna do Reino e princípio fundamental do(a) seguidor(a) de Jesus; nela aparece a visão que Jesus tinha e desejava para o ser humano. Este texto não é apenas uma normativa, uma ética, mas um modo de entender a vida humana; elas oferecem um programa de felicidade e de esperança, ou seja, elas nos ensinam a ser ditosos, no desprendimento e na solidariedade, na pureza de coração e de vida, na liberdade radical, na esperança... tanto no nível pessoal como comunitário.
As bem-aventuranças compartilham uma mesma visão “macro-ecumêmica”: valem para todos os seres humanos. O Deus que nelas aparece não é “confessional”, não é “patrimônio” de uma religião específica; não exige nenhum ritual de nenhuma religião, senão o “rito” da simples religião humana: a pobreza, a opção pelos pobres, a transparência de coração, a fome e sede de justiça, a luta pela paz, a perseguição como consequência do empenho em favor da Causa do Reino... Essa “religião humana básica fundamental” é a que Jesus proclama como “código de santidade universal”, para todos os santos e santas, os de casa e os de fora, os do mundo “católico” e os de outras expressões religiosas...
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.
A santidade é luz expansiva do divino que se faz visível no “modo contemplativo” de viver.
- Sua presença junto às pessoas é transparência da santidade de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos: amor a Deus e amor ao próximo”
Jesus, no seu ministério em favor da vida, se depara com inúmeras perguntas; muitas delas escondiam uma pretensão de colocá-lo à prova e desmoralizá-lo diante dos outros. Desta vez aparece uma pergunta fundamental e radical: “qual é o primeiro de todos os mandamentos da Lei”?
Jesus, em primeiro lugar, responde à pergunta tal e como lhe fazem. De sua boca, o mandamento bíblico do amor recebe toda sua profundidade, não somente como compêndio da lei, mas como síntese da vida: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento”. Trata-se de amar com tudo o que existe em nosso ser, em termos de capacidade de decisão (coração), de alento vital (alma), de consciência (mente) e de força vital (forças).
Amar a Deus com todo o coração é amá-lo com o que há nele: com seu lado de luz e de sombra, com seu trigo e sua cizânia, com sua terra boa e sua terra baldia...; podemos amá-lo sem medo, podemos amá-lo sem ter que esconder nossas fragilidades, podemos amá-lo a partir de qualquer situação de nossa vida, pois nada do que é humano fica fora, tudo se converte em motivo para deixar-nos habitar por sua ternura amorosa.
Isso significa que não teremos que esperar chegar à perfeição para poder amá-lo com todas as nossas forças, que não precisamos ter tudo resolvido dentro de nós, que não temos que ter a casa de nossa vida ordenada... mas que é Ele quem, ao entrar em nosso interior e habitá-lo, vai ordenando tudo à sua maneira e nos faz capazes de acolher e de amar os outros. Mas, Jesus aproveita também para responder à pergunta que não lhe fora feita, mais profunda e reveladora. Jesus é mestre em fazer nova pergunta em cima de outra pergunta; Ele não perde a ocasião e aproveita das perguntas para chamar a atenção para algo mais importante. Jesus responde, em primeiro lugar, aquilo que todos já conheciam; mas, para que não ficassem acomodados com o primeiro mandamento, acrescenta-lhes o segundo: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
No fundo, Jesus veio lhes dizer que sim, que o principal é o amor a Deus, mas que o amor a Deus não era verdadeiro se não era acompanhado do amor ao próximo. Mais ainda, Jesus quis indicar que o mandamento do amor ao próximo é de igual valor e de igual importância que o mandamento do amor a Deus.
Além disso, Jesus simplificou as coisas, porque frente aos 248 preceitos e as 365 proibições reduziu tudo a dois. E com isso era suficiente: “ama a Deus e ama o teu próximo”. Por esta resposta eles não esperavam, mesmo dizendo-lhes que estes dois mandamentos são toda a Lei. E que com estes dois mandamentos todas as demais normas e leis são secundárias.
Nós, certamente, não temos a pretensão de tentar e nem de colocar Jesus à prova. Mas é possível que tenhamos medo de lhe fazer a mesma pergunta dos fariseus, pois temos uma infinidade de leis, a maioria inúteis e sem sentido. Encantam-nos a floresta de leis; basta olhar o Código de Direito Canônico e nos encontramos com 1752 leis e vários Apêndices; cada Diocese e paróquia tem suas normas e leis; e se levarmos em consideração o Código Civil, o Código Penal e demais códigos... Jesus é muito mais simples e direto; para Ele dois mandamentos são suficientes.
Nós também temos medo de lhe perguntar pelo essencial, pois temos medo de lhe perguntar sobre o amor; até nos atreveríamos perguntar pelo amor a Deus, mas que não diga que temos de amar o próximo “como a nós mesmos”. No entanto, no seguimento e identificação com Jesus, precisamos de dois remos: o amor a Deus e o amor ao próximo. Se nos falta um deles, nossa fé não caminha. Não caminha se não amamos a Deus com todo nosso coração; tampouco caminha se não amamos os outros “como a nós mesmos”.
Temos inventado mil e uma devoções e nos sentimos bons; criamos uma infinidade de orações e de ritos, e nos sentimos merecedores do prêmio celeste; cumprimos uma infinidade de ritos para pacificar nossa relação com Deus. E, no entanto, sabemos que de nada vale todo este arsenal de coisas piedosas e rituais, se não somos capazes de amar. O coração que não ama é um coração de casca, estéril, seco... O coração que não ama é um coração vazio de Deus e dos seres humanos.
“No final do meu caminho me dirão: - E tu, viveste? Amaste? E eu, sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes” (D. Pedro Casaldáliga).
O coração humano deveria ser também uma espécie de agenda onde, como diz Casaldáliga, no final da vida, quando seremos perguntados sobre o amor, nos bastará abrir o coração para que Deus o veja cheio de nomes. E isso será um dos sinais de que temos vivido e amado.
Quando amamos, escrevemos o nome das pessoas em nossos corações. Por isso, podemos imaginar o coração de Deus cheio de nomes: o teu, o meu e o de todos. Também os daqueles a quem ninguém chama e a quem ninguém os leva em seu coração.
Quando quero saber se de verdade amo a Deus, olho se levo seu Nome em meu coração. Quando quero saber se de verdade amor o meu próximo, me pergunto quantos nomes carrego escritos no coração. Quando quero saber a quantos não amo, olho o meu coração e vejo quantos nomes apaguei ou quanto nunca escrevi nele ou quantos faltam.
Ser seguidor(a) de Jesus é encher o coração de nomes, muitos deles nunca temos escutado e até é possível que nem saibamos pronunciá-los.
O(a) seguido(a), que entrega sua vida pela causa do Evangelho e por amor à humanidade, tem o coração cheio de nomes, inclusive aqueles que nem conhece e nem conhecerá nunca, mas que ele(ela) continua amando e continua investindo sua vida para que algum dia também eles entrem no fluxo do amor divino.
Esta é a razão pela qual o “segundo mandamento” – “amarás o teu próximo como a ti mesmo” – é “semelhante ao primeiro”. Não amamos por imposição, mas porque somos amor. No amor, nada é obrigação, tudo é dom! É certo que podemos viver na superfície mais egocêntrica, ignorando e bloqueando nossa realidade mais profunda. Mas, na medida em que vivemos a partir dessa realidade profunda, tudo aparece unificado e harmonioso; tudo fica admiravelmente integrado: uma existência sem costuras, sem emendas, tecida e mantida no Amor fontal de Deus.
O amor unifica tudo a partir do mais profundo. Ele dá unidade a toda a nossa atividade, por mais dispersa que ela possa parecer. O amor é a força que pode dinamizar e unificar nossa existência. Podemos fazer muitas coisas, comprometer-nos com mil atividades, todos os dias; no entanto, o mais importante é fazê-lo sempre da mesma maneira: com amor.
O amor estimula o que há de melhor em nós. Ele ilumina nossa mente proporcionando clareza de pensamento e criatividade; dinamiza toda nossa pessoa; faz crescer nossas energias; desperta nossa capacidade para a busca do que é melhor; dá um novo colorido à nossa vida cotidiana; capacita-nos a realizar nossas atividades com mais inspiração; enraíza-nos no mais profundo da vida, nessa corrente vital que flui de um Deus, que é mistério de amor. É por isso que o amor cura e salva.
Texto bíblico: Mt 22,34-40
Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Devolvei a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” (Mt 22,21)
Jesus sempre foi presença desconcertante; sua vida desconcertava a todos; seu modo de falar e de agir, sua liberdade de espírito desconcertava sobretudo aqueles que eram investidos de “poder religioso”.
Os fariseus mandam seus discípulos fazerem uma pergunta maldosa a Jesus; eles não têm coragem de olhar Jesus de frente e por isso mandam outros. Duas atitudes inautênticas: aqueles que mandam, porque não tem coragem de fazer a pergunta e ouvir o que não querem; e aqueles que são “mandados”, sem personalidade própria, fazem o que os outros dizem para fazer...
Parece que Jesus era um mestre em desativar perguntas com intencionalidade enganosa e desmascarar criativamente aqueles que urdiam armadilhas com a única finalidade de enredá-lo nelas. Isso já ocorrera em outras situações; mas o evangelho de hoje trata de uma questão particularmente sensível para um povo dominado pelo império romano e submetido a uma agravante pressão através do pagamento escorchante dos impostos. Aqui os fariseus revelam uma confusão de “poderes” ao dirigirem uma capciosa pergunta a Jesus sobre a licitude ou não em pagar o imposto a César. Mas Jesus não só desmascara a incoerência daqueles que estendem a armadilha, senão que introduz uma afirmação carregada de consequências, que transcende por completo a questão apresentada: “Devolvei a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.
Jesus, que não vivia a serviço do imperador de Roma, senão “buscando o Reino de Deus e sua justiça”, acrescenta uma grave advertência sobre algo que ninguém lhe perguntou: “devolvei a Deus, o que é de Deus”. A moeda, que representa o Imperador César, tem um valor relativo, mas o ser humano tem um valor absoluto, porque é imagem e semelhança de Deus.
A moeda traz a “imagem” de Tibério, mas o ser humano é “imagem” de Deus: pertence só a Deus. As pessoas nunca podem ser sacrificadas a nenhum poder. Jesus não põe Deus e César no mesmo nível, senão que toma partido por Deus. César se impõe (imposto) pelo poder, que oprime e exclui; Deus não se impõe (não é imposto); faz-se dom, se esvazia de todo poder e se aproxima de nós, se faz comunhão. Por isso, o relacionamento entre o ser humano e Deus dá-se na esfera da mais pura liberdade, lá onde as decisões são ditadas pelo amor.
Normalmente utiliza-se a frase “devolvei a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” para justificar o poder. Se algo está claro no evangelho é que todo poder é nefasto porque massacra o ser humano. Ouvimos repetir com insistência que todo poder vem de Deus. Pois bem, segundo o Evangelho, nenhum poder pode vir de Deus, nem o político nem o religioso. Em toda organização humana, quem está à frente, está ali para servir aos outros, não para dominá-los ou submetê-los. Porque, o que a resposta de Jesus faz é desativar por completo toda absolutização do poder. Ninguém nem nada pode atribuir a si um poder absoluto. Só Deus é Deus.
Jesus não busca defender os interesses de Deus frente aos interesses de César, senão defender o ser humano de toda escravidão; Ele não está propondo uma dupla tarefa para os humanos, mas a única tarefa que lhe pode levar à sua plenitude: servir ao outro. Jesus deixa muito claro que César não é Deus, mas, muitas vezes, nós nos apressamos em converter a Deus em um César. É preciso ter clara consciência que Deus não é um César superior e que nem atua como César. Quando alguém atua com poder, atua como um César.
A frase do Evangelho também foi entendida, muitas vezes, da seguinte forma: é preciso estar mais dependente do “césar religioso” do que do “césar civil”. Nenhum exercício do poder é evangélico. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Nenhum ser humano é mais que outro nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que Jesus admite é o serviço.
Aqui não se trata de dividir atribuições, nem sequer com vantagens para Deus. Deus não compete com nenhum poder terreno, simplesmente porque Deus não atua a partir da categoria de poder. Além disso, todo aquele que procura atuar com o poder de Deus, está se enganando. Jesus nunca defendeu o poder senão as pessoas, sobretudo àqueles que mais precisam de defesa: marginalizados, explorados, excluídos...
A única maneira de entender todo o alcance da mensagem de hoje é superar a imagem de Deus que estamos arrastando há muito tempo. Deus, ao criar, não se separa da criação. A Criação é o transbordamento do coração de Deus. Não há nada que não seja de Deus, porque nada há fora d’Ele. O ser humano é o grau máximo da presença de Deus na Criação. Somos criaturas de Deus, só a Ele pertencemos totalmente.
A palavra de Jesus, portanto, aponta para um modo de se viver; ou, mais exatamente, questiona sobre o “a partir de onde e de quem” nós vivemos: a partir do nível do relativo (césar) ou a partir do nível profundo (Deus)? Alimentamos diferentes “césares” em nosso coração, aos quais nos fazemos submissos: instinto de posse, busca de poder e prestígio, consumismo, obsessão por um bem-estar material sempre maior, o espírito de competição... Quando é “césar’ que determina nossa vida, sua influência envenena nossa relação com Deus, deforma nossa verdadeira identidade e rompe nossa comunhão com os outros; nós nos desumanizamos. Como seguidores de Jesus, devemos buscar n’Ele a inspiração e o alento para viver de maneira livre e solidária.
O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como “representantes” do divino.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres. O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais nobres que possam parecer. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua consciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus.
Texto bíblico: Mt. 22,15-21
Na oração: Quem é o “senhor” que move seu coração?
- Deixar Deus desalojar os “césares” que carrega em seu interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ide às encruzilhadas dos caminhos e convidai para a festa todos os que encontrardes” Mt 22,9)
Através de suas parábolas Jesus nos revela uma profunda visão contemplativa da vida; e esta Sua visão não o afasta da realidade; pelo contrário, mantém-no sempre em contato com a fragilidade da existência humana: sentou-se à mesa e comeu com os pecadores; misturou-se com os doentes e os impuros; comprometeu-se solidariamente com os mais pobres, oprimidos e excluídos de seu tempo; revelou sua presença compassiva junto aos mais fracos e sofredores, vítimas de uma estrutura social e religiosa injusta.
Jesus destruiu as categorias de puro e impuro, perfeito e imperfeito, justo e pecador... E anunciou um banquete para todos, “maus e bons”. O Deus que Jesus revelou mostra o seu rosto na proximidade e na reconciliação para com todos. Ele não tem vergonha de se aproximar e de se misturar com a pobreza e a fragilidade dos seus filhos e filhas; Deus encontra-se mergulhado no humano, acolhe tudo e plenifica tudo (inclusive a fragilidade). Ele se apresenta como um “Deus errante”, que corre ao encontro daquele que está perdido.
O Deus de Jesus não age do mesmo modo que o “deus dos fariseus”. Ele não faz comparações entre uns e outros; não coloca os impuros em situação de desvantagem. Ele é o Deus “festeiro”, que sempre propõe a “mesa da inclusão” a todos os seus filhos e filhas.
Jesus põe no centro de seu anúncio a indigência, a fragilidade, o limite... e não a perfeição, a pureza... Ele sabia que a pessoa consciente de suas fragilidades e pobrezas é mais disponível e aberta à Graça de Deus. Para Jesus, a experiência da fragilidade dá a conhecer a profundeza da existência humana. É reconhecendo-se fraco e limitado que o ser humano se abre para Deus e para os outros; é sua própria fragilidade e pobreza que o fazem sensível à escuta e acolhida do convite de Deus para participar da mesa do Reino. Este é o caminho de Deus em direção ao ser humano, e do ser humano rumo a Deus.
Para fundamentar a imagem do Deus que se deixa afetar por aqueles que estão excluídos nas encruzilhadas da vida, Jesus conta a parábola de um rei que prepara um banquete de casamento do seu filho para muitos convidados. Como toda parábola, o ponto de inflexão está em rejeitar a oferta. Ninguém rejeita um banquete. Mas o primeiro e o segundo grupo de convidados, com o coração marcado pela ingratidão e afeiçoados aos seus bens e interesses, fazem-se de surdos diante do convite. O campo, os negócios, a violência... é mais importante que a festa da vida.
Quando nenhum dos convidados comparece, o dono da casa ordena aos empregados: “ide às encruzilhadas dos caminhos...”, para que convidem a todos, maus e bons. O importante é que haja banquete, que haja festa. E com frequência, os mais disponíveis são precisamente aqueles que não podem fazer grandes festas. Os pobres e excluídos tem poucas festas, mas encanta-lhes as festas; são aqueles que mais sabem festejar. São eles que dizem sim ao primeiro convite; são eles que não podem comprar campos, nem juntas de bois. E Deus enche a sala com todos eles.
É provável que as pessoas, às quais o texto se refere originalmente, tenham sido aquelas que viviam fora de Jerusalém, em meio a um mundo de pobreza e exclusão. Tal situação as impedia participar de qualquer festa. Mas se entendermos a parábola em chave de interioridade, como motivação para nosso caminho em direção a uma vida maior, podemos afirmar: o chamado a uma vida em profundidade pode ficar ofuscado pelo ego fechado e superficial.
O apego aos bens e aos negócios podem nos impedir de escolher o caminho da vida expansiva; uma vida bem-sucedida é o maior inimigo da transformação. Quem se acomoda no sucesso não prosseguirá em sua caminhada interior e ficará parado em sua imaturidade humana. Quem confia demais em seus próprios negócios ou em seu sucesso pode romper o vínculo com o coração e renegar seu verdadeiro eu.
O perigo está em ter ouvidos para os cantos das sereias, e não para o convite que vem do mais profundo de nosso ser, que nos chama a uma plenitude humana. Por outro lado, o que a parábola está querendo também nos revelar é isto: também aquilo que faz parte do nosso inconsciente, que deixamos abandonado em algum ponto da nossa encruzilhada interior, ou seja, tudo aquilo que em nós foi rejeitado e reprimido, também quer ser incluído e ter um lugar na mesa festiva com Deus. Toda a nossa história é importante, tudo o que jamais foi experimentado e vivenciado deve ser convidado para a integração. Cada aspecto de nossa vida, rico ou pobre, faz parte da nossa humanidade, e tudo o que é humano é lugar de salvação; não devemos negar nossos desvios e fracassos, pois eles também querem contribuir para à nossa verdadeira identidade em Deus. Justamente os aspectos rejeitados e excluídos de nossa vida é que estão mais sensíveis ao convite à vida plena.
Só podemos nos tornar plenos em Deus quando lhe oferecermos nossas fraquezas, limitações e fragilidades. Tudo aquilo que escondermos de Deus fará falta na nossa humanização. Se não aceitarmos os aspectos abandonados e excluídos nas esquinas e encruzilhadas da nossa existência, atravessaremos a vida apenas com metade daquilo que somos: um ser humano que apenas quer revelar seu lado positivo. Quando nos encontramos assim, sentimos que nada pode fluir, porque algo nos falta.
Essa força terapêutica da parábola nos transmite uma grande esperança: tudo o que compõe nossa história, rica e pobre, positiva e negativa, compõe nossa vida; nada deve ser rejeitado e nem julgado; tudo deve ser acolhido e tudo deve ser oferecido ao Senhor da festa.
Toda a nossa vida, todo o nosso ser, tudo o que carregamos em nosso interior, bom e mau, quer ser transformado pelo Espírito e pelo amor de Deus; só assim, aquela imagem original que Ele tem de cada um pode se revelar e brilhar em qualquer circunstância de nossa vida. Podemos, então, afirmar que a vida está nas encruzilhadas de nossa existência; afirmando de outro modo: as encruzilhadas estão também carregadas de vida. É das encruzilhadas existências que pode nos surpreender com o surgimento do novo. É ali que o convite à plenitude de vida ressoa com mais intensidade.
Nossa razão, nosso “eu perfeccionista”, nosso “ego inflado”, nossas afeições desordenadas...não se deixam impactar pelo convite para a festa da vida. Estão seguros de si, atrofiados e petrificados em seus mundos...
Mas há ainda uma outra imagem surpreendente, revelada pela parábola deste domingo: os maus também são convidados para o banquete festivo. De repente, porém, a atmosfera muda mais uma vez. Entre os convidados, o rei descobre um homem sem a “roupa” apropriada para o casamento. Quando o homem não sabe responder à pergunta por que comparecera à festa sem a roupa de casamento, o senhor ordena que seja jogado lá fora na escuridão.
Todos os nossos aspectos são convidados ao banquete da completude, tantos os aspectos bons quantos os maus, mas nós também precisamos fazer algo. Esta é uma notícia boa: tudo em nós pode alcançar a união com Deus – também nossos aspectos sombrios e maus -, mas precisamos revesti-los com a roupa do amor, precisamos oferecê-los conscientemente a Deus. Se assim não o fizermos, eles não serão transformados, mas continuarão excluídos na escuridão de nossa existência; com isso não haverá uma festa de casamento, não haverá plenitude de vida.
Texto bíblico: Mt 22,1-14
Na oração: “Fazer estrada com Deus” nos recorda constantemente que Ele está nos chamando nas provocativas encruzilhadas de nossa existência. O desafio permanente é este: examinar as “coisas” que estão ocupando por completo nosso coração e “tomando conta de nós” a ponto de bloquear o fluxo da Graça e da Vida.
No fundo, a questão fundamental é esta: a quê “reino” você está servindo? O reino do seu “ego” ou do Deus da vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“A segunda postura: Deixar-se surpreender por Deus. Quem é homem e mulher de esperança sabe que, mesmo em meio às dificuldades, Deus atua e nos surpreende. A história deste Santuário serve de exemplo: três pescadores, depois de um dia sem conseguir apanhar peixes, nas águas do Rio Paraíba do Sul, encontram algo inesperado: uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera, tornar-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe? Deus sempre surpreende, como o vinho novo, no Evangelho que ouvimos. Deus sempre nos reserva o melhor. Mas pede que nos deixemos surpreender pelo seu amor, que acolhamos as suas surpresas. Confiemos em Deus! Longe d’Ele, o vinho da alegria, o vinho da esperança, se esgota. Se nos aproximamos d’Ele, se permanecemos com Ele, aquilo que parece água fria, aquilo que é dificuldade, aquilo que é pecado, se transforma em vinho novo de amizade com Ele” (Homilia do Papa Francisco em Aparecida – 2013)
Uma festa mariana é sempre um motivo de alegria; a festa da mãe Aparecida é, para o povo brasileiro, um momento de inspiração e de profundidade. Neste dia festivo, o que se pode afirmar de mais grandioso a respeito de Maria é que ela foi uma mulher absolutamente humana; nessa humanidade devemos descobrir a grandeza de sua pessoa. Se fundamentarmos sua grandeza nos brocados e indumentárias que fomos acrescentando durante séculos, estaremos minimizando seu verdadeiro ser e dando a entender que, em si mesma, Maria não é suficientemente importante, já que a valorizamos mais pelos adornos que vamos colocando sobre ela.
Em Maria descobrimos aquilo que, na essência, todos somos. Conhecer seu verdadeiro ser é a chave para a interpretação atualizada da festa de hoje. Não devemos nos conformar em olhar Maria para ficarmos extasiados diante de sua beleza. O que descobrimos nela, devemos também descobrir em nosso próprio ser. O que importa realmente é que em Maria e em todo ser humano há um núcleo intocável que nada nem ninguém pode manchar. O que há de divino em nós será sempre imaculado. Tomar consciência desta realidade, seria o começo de uma nova maneira de entender a nós mesmos e de entender os outros.
Maria é grande em sua simplicidade e não temos nada que acrescentar ao que ela foi desde o princípio. Basta olhar para o seu verdadeiro ser e sua maneira original de se fazer presente junto aos outros para, então, descobrir o que há de Deus em seu interior; isso é que sempre será puríssimo, imaculado. Se descobrimos isso nela, é para tomar consciência de que também está presente em cada um de nós.
Como a imagem negra e despojada encontrada no rio Paraíba do Sul, Maria não necessita nenhum adorno. Néscio é aquele que pinta um diamante; tolo é aquele que cobre uma pérola de purpurina; fantasioso é aquele que pretende enfeitar uma rosa que acaba de se abrir pela manhã; insensato é aquele que tenta acariciar uma borboleta que acaba de sair de seu casulo. Maria é o diamante, a pérola, a rosa, a borboleta. Livre de toda indumentária, ela é mais formosa.
De nada nos servirá descobrir a pérola em Maria se não a descobrimos também em nós mesmos. Somos milhões de diamantes que habitamos esta terra, embora cobertos de terra e barro. De nada nos servirá descobrir a pérola em Maria se não a descobrimos em nós em nós também. Contemplar Maria e deixar des-velar (tiar o véu) a nobreza humano-divina escondida em nosso interior.
Em todos nós, algo de bom, de inocente, de imaculado, continua a dizer “sim” ao incompreensível Amor... É preciso encontrar esta dimensão interior por onde entra a vida, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de intimidade, alguma coisa de mais profundo do que aquilo que aparentamos ser; existe em nós alguma coisa de mais divino e mais profundo, que é a beatitude original.
Somos habitados por uma realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os nossos medos e feridas...
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.
Nesse sentido dizemos que ela é Imaculada como referência única de uma humanidade que também é capaz de escutar Deus e de responder-lhe; ela é Imaculada porque nos “des-vela” que também nós podemos romper as amarras que nos desumanizam; ela é Imaculada porque “re-vela” que o ser humano é “lugar” de abertura a Deus, que é possível viver em liberdade, dialogando com os outros, a serviço da comunhão e da vida. Porque se fez presente a Deus, Maria vai se fazendo presente na vida das pessoas de uma maneira sempre mais criativa e atenta; presença que se faz manancial de vida para os outros, tornando-se, ao mesmo tempo, amiga, irmã e mãe de todos.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desperta e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Escutando as palavras de Maria – “Fazei tudo o que Ele vos disser!” - nosso ouvido interior se afinará para perceber melhor o clamor dos empobrecidos e excluídos da festa da vida. É o clamor de nosso mundo. Maria de Nazaré nos recorda que a falta de vinho é esquecimento da fraternidade, é falta de amor e de comunhão, é ausência do Reinado de Deus entre nós. Por outro lado, em meio a tantas carências, também se fazem visíveis os sinais do Reino: desejos de solidariedade, gente que protege a vida, homens e mulheres que buscam a Deus e se comprometem com a vida, tantas vezes ameaçada. Maria nos atrai para a festa que nunca se acaba: compartilhar nossa existência com muita gente e viver sob os impulsos do Espírito.
A festa de hoje nos ajuda a ativar uma sensibilidade solidária, pois é muito frequente estar próximo e não perceber os outros, estar junto e não ter consciência dos problemas e dificuldades dos outros. É preciso ampliar o olhar para entrar em sintonia compromissada com a realidade carente.
O mundo nos reconhecerá pelos nossos gestos de solidariedade.
Evangelho: Jo 2,1-11
Na oração: Com a imaginação, situe-se em Caná e coloque-se junto a uma das talhas cheias de água que João, intencionalmente, diz que eram “de pedra, destinadas às purificações rituais dos judeus”. É a maneira dele fazer ver a rigidez pétrea e a inutilidade da água na hora de animar uma festa.
- Sinta tudo o que há de água depositada e parada em sua vida, com a desculpa de usá-la como purificação na relação com Deus; sinta-se como talha de pedra, fria e rígida, que o(a) torna incapaz de mobilizar sua vida em favor da vida.
- Reconheça e agradeça tudo o que na sua vida se parece com o vinho, que lhe dilata e lhe dá sentido de festa.
Vinho expansivo que provoca alegria, abundância, reconstrução de novas relações...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Na Bíblia, “bênção”, “abençoar” e “bendizer” estão por toda a parte. Para os judeus, a bênção significa a comunicação de vida, concedida por Deus (Num 6,23). E eles não separam o espiritual do material. Por causa da vida que Deus nos dá, todo o povo recebe energia, alegria, paz, esperança, cura, fertilidade nas plantas, nos animais e nas pessoas, e justiça nas relações. Quem tem a bênção de Deus deve comunicar para os outros. Assim acontece com o pai e a mãe, que abençoam os membros da família (Gn 9,26) e com as autoridades (sacerdotes, profetas e os reis). A bênção é a vida de Deus, que a gente sente como o perfume no ar. Ela brota como água de nascente e fecunda toda a criação. No relato de Gênesis 1, o Criador abençoa as aves, os peixes, o homem e a mulher. E Deus promete a Abraão: em Ti serão abençoados todos os povos da Terra (Gn 12,3). Quem espalha a bênção, se torna “bendito” e bendiz o Senhor. “Que eu bendiga ao Senhor e não me esqueça de nenhum de seus benefícios” (Sl 103,2). Como é importante a gratidão!
O contrário da bênção é a maldição. Ela se traduz por infelicidade, brigas, violência contra os fracos, falta de comida, maldade, afastamento de Deus. Como o povo da bíblia não conhecia a medicina, também pensava que toda doença era uma forma de maldição. Por isso, se pedia a bênção para curar enfermidades e livrar da morte. Os seguidores de Jesus perceberam que a bênção de Deus é gratuita e nos encanta. Eles usam mais a palavra “Graça” (2 Cor 13,14). Quem recebe a bênção de Deus é agraciado. Assim, Lucas diz que Maria é “cheia de Graça” (Lc 1,28), a bendita entre a mulheres (Lc 1,39).
Os 300 anos de Aparecida testemunham muitas bênçãos. A devoção começa simples, como uma nascente. Os primeiros frutos são a fartura dos peixes, que alimentam também a todos. Cria-se uma pequena comunidade em torno da imagem. O escravo fugido é libertado de suas correntes. No correr dos anos, os devotos recebem muitas graças: curas de doenças graves, salvação em acidentes, superação de problemas na família, conversão a Deus, conseguir uma profissão, encontrar o amor de sua vida.
A peregrinação em grupo até o santuário é uma bênção. As comunidades se organizam. Durante a viagem, os romeiros compartilham o alimento, conversam, rezam, brincam. Fortalecem os seus laços. Os que vem a pé experimentam a liberdade interior, a dureza do caminho, o desapego, a busca do essencial.
Os 300 anos de Aparecida coincidem com um momento difícil da nossa história. A bênção ainda não penetrou na sociedade como um todo, especialmente na política e na economia. A CNBB denunciou esta situação. Os poderes em Brasília praticam o roubo e a iniquidade abertamente, defendendo seus próprios interesses. O governo, com o apoio dos deputados e senadores, diminui as oportunidades aos mais pobres e favorece a elites. Retira direitos sociais. Faz leis injustas. Membros do judiciário condenam e prendem sem provas. E mandam soltar pessoas corruptas que se enriqueceram com o dinheiro do povo. A ecologia, os direitos dos povos indígenas e dos quilombolas estão ameaçados. Nossa Senhora Aparecida está muito triste com tudo isso. Como a Rainha Ester, o que ela mais deseja é a vida do seu povo (Est 7,3).
Que este ano mariano tenha despertado a consciência social e o compromisso de muitos cristãos. Que a bênção de Aparecida se transforme em vida plena para todos os brasileiros(as), a começar dos mais pobres, como aconteceu há 300 anos, nas margens do rio Paraíba. Amém!
Ir. Afonso Murad
“Certo proprietário plantou uma vinha...” (Mt 21,33)
Segundo o relato da Criação, nós viemos da argila, do húmus... Por isso carregamos em nosso corpo os mesmos elementos físico químicos da natureza: minerais, plantas, animais...
O universo inteiro mora, adormecido, dentro de nossos corpos. Cada ser humano carrega latente em seu íntimo toda a sabedoria do universo. O poeta americano Walt Whitman nos legou uma frase maravilhosa e emblemática sobre este tema: "Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim".
Há multidões dentro de nós, não só de animais, plantas, pássaros, peixes, minerais... como também de homens e mulheres de todas as etnias, os jardineiros da criação divina. Há um universo inteiro dentro do corpo, universo mais fantástico, mais colorido, mais belo que o universo que existe do lado de fora. E o maior desafio é, justamente, a convivência e a harmonia com todo o universo que carregamos em nosso próprio interior.
Partindo do evangelho de hoje (27º Dom TC), podemos dizer que há uma vinha em nosso interior, plantada com todo cuidado. A vinha interior é plantada por Deus em função da vida; por isso ela é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina. Ela deve ser o lugar da fecundidade, da convivência e da celebração.
A vinha interior é o “mundo” de nossa psique, de nossos afetos, de nossas energias, de nossa espiritualidade, de nossos sentimentos e desejos, de nossas relações básicas, quer conosco mesmos e com os outros, quer com as criaturas e com Deus. Quando todos estes dinamismos estão pacificados e integrados, cria-se um “cosmos” interior, expressão da “vinha secreta” que todos carregamos.
Esta vinha é expansiva, acolhedora, aberta a todos, compartilhando seus frutos abundantes. Ela é lugar de movimento, de encontro, de desafio, lugar provocativo e criativo..., enfim, lugar carregado de presenças. Somos a verdadeira vinha a partir da qual Deus nos encontra e se dá a conhecer; cada um de nós é autêntica vinha da eterna presença de Deus.
Na perspectiva bíblica, a imagem da vinha nos fala de convivência, harmonia, alegria, de acolhida e da gratuidade, por ela ser dada em herança. Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua interioridade, sonhos de rara beleza. São desejos de convívio, de superação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e da harmonia... O “eu interior” é uma vinha que se desvela e se revela aos olhos encantados. Toda pessoa possui, nas profundezas de si mesma, um lugar misterioso onde a vinha se esconde, muitas vezes em meio a entulhos de feridas, traumas, rejeições.... Ela deve reencontrar a “vinha perdida”, não fora mas nas profundezas de si mesma. Há dentro dela uma vinha secreta, fechada, que precisa ser aberta.
Caminhar pelo vinha interior é uma aventura, um desafio... Essa é a peregrinação interior: ampliar o espaço da vinha para que ela seja sempre lugar da acolhida e da festa. É nesta direção que a imagem bíblica da vinha também aponta: torná-la uma fonte de bênçãos, de comunhão com as outras pessoas e estreitamento de relações com o próprio Criador. A vinha é o lugar no qual não só existimos e revelamos nossa verdadeira identidade, mas onde somos chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com Deus e com todos.
No entanto, há sempre em nós uma tendência a delimitar, defender e fechar-nos em nossa própria vinha. Isso fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos aquilo que está para além da nossa vinha. São grandes os riscos de vivermos em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza atrofia a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. A própria vinha se torna uma “bolha de proteção” e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que fazemos.
Contemplando o cenário do nosso interior vamos também tomando consciência que perdemos o sentido da corrente da vida e de sua imensa diversidade. Esquecemos a teia das interdependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.
Segundo a imagem bíblica da Vinha, quando rompemos a aliança com Deus e nos afastamos d’Ele, ela fica estéril. Por nossa atitude de arrogância e de autossuficiência, nós nos fazemos centro e vamos deixando que nossos instintos de poder, vaidade, prestígio... ocupem o espaço da vinha interior. Este autocentramento se revela como uma força de desintegração de nós mesmos com nossa fonte Original, como força de autodestruição e, por fim, como ruptura de comunhão com o Todo.
A “centração em nós mesmos”, sem levar em conta a rede de relações que nos envolve, provoca a quebra da “religação” com tudo e com todos. Este é o veneno que nos corrói por dentro: a petrificação de nossa interioridade, o embrutecimento de nossa sensibilidade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com todos... E nossa vinha interior deixa de ser fecunda e oblativa.
Deus investiu pesado no plantio e no cuidado desta vinha interior, esperando frutos saborosos. Uma leitura honesta do texto do evangelho de hoje nos move a fazer-nos graves perguntas: Estamos produzindo em nossos tempos os frutos que Deus espera de sua vinha: justiça para com os excluídos, solidariedade, compaixão para com quem sofre, a vivência do perdão...? No entanto, quê coisas horríveis fizemos com a vinha interior!
Ferir nossa vinha é ferir o próprio Criador, é atrofiar a vida e suas possibilidades. Quando observamos esta vinha outra verdejante, lugar da criatividade, da relação, da comunhão... e agora entulhada de lixo, de contaminação... uma sensação de violação, de sacrilégio, se manifesta em nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas de nosso ser: “Que fizestes de minha vinha!”.
Deus não tem por que abençoar uma vinha estéril da qual não recebe os frutos que espera. Não tem porque identificar-se com nossa mediocridade, nossas incoerências, desvios e pouca fidelidade. Se não respondemos às suas expectativas, Deus continuará abrindo caminhos novos para seu projeto de salvação com outras pessoas que produzam frutos de justiça.
Ampliar a vinha do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudan-ças e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando a “vinha interior”, abrasada e iluminada pela força do Espírito, começa a romper as paredes de proteção e se conecta com a grande “vinha exterior”: lugar da missão, do compromisso, do empenho em favor do Reino.
Não tem sentido ampliar a “vinha externa” se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Vinha ampla é convite a sonhar alto, a pensar grande..., ousar ir além, rompendo o modo rotineiro de viver. Por isso, nós e o universo só seremos felizes quando todos formos uma grande vinha, por onde o Senhor passeia, à hora da brisa fresca da tarde (Gen 3,8) . A vinha é a face graciosa que Deus oferece à humanidade. Na vinha, Deus realiza seu sonho. E fica feliz.
Texto bíblico: Mt 21,33-43
Na oração: deixe o Espírito transitar pela sua vinha interior, para que aí Ele estabeleça o “cosmos” (harmonia e beleza”) e crie um coração novo, de onde brotarão frutos de refinado sabor.
- Dê nomes aos “frutos” de sua vinha interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...os cobradores de impostos e as prostitutas entrarão antes de vós no Reino de Deus” (Mt. 21,31)
A frase acima é uma das mais cortantes, proferida por Jesus aos chefes religiosos. Os cobradores de impostos e as prostitutas constituíam as duas classes de pessoas mais odiadas e que sofriam maior preconceito na sociedade religiosa de seu tempo.
Com sua presença e ternura Jesus quebra as atitudes preconceituosas que delimitam friamente os espaços e alimentam proibições que impedem a manifestação da vida. Jesus provoca um grande escândalo nos seus ouvintes, sobretudo entre os fariseus, sacerdotes e anciãos do povo, que se consideravam superiores aos outros, perfeitos cumpridores da lei, e, portanto, merecedores da atenção de Deus. Eles apresentavam-se como modelos para o povo, porque viviam atraídos por um Deus que somente eles encontravam. É duro viver ao lado de um fundamentalista, porque igualmente duro é seu “deus”.
De fato, há um monstro que habita as profundezas de nosso ser, devorando-nos continuamente e expelindo seu veneno mortal: trata-se do preconceito. Ele constitui o risco permanente em nossa vida, pois limita a realidade, aumenta as distâncias, estreita o coração, inibe o olhar e nos faz incapazes de acolher o bem e a verdade presentes no outro que é diferente.
O preconceituoso está o tempo todo petrificado em suas velhas e deformadas opiniões sobre tudo e sobre todos. Ele é precipitado em julgar, apressado e ansioso na formulação de juízos sem critérios. Geralmente, os preconceituosos são dogmáticos e fervorosos, muitos deles tornam-se fundamentalistas, com hostilidade e intolerância religiosa. Cegos para a verdade, eles preferem o auto-engano ao conhecimento de fato; fincam pé naquilo que pensam que sabem, no que está estabelecido e normatizado; não se atualizam, não conseguem ver o novo e a necessidade de mudanças.
Ao tornarem absoluta uma verdade, condenam-se à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...
Jesus, pelo seu modo de ser e pela sua pregação, toca as profundezas da vida. Ele convive, a maior parte de seu tempo, com aqueles que não tinham lugar dentro do sistema social-religioso existente. Ele se coloca ao lado dos excluídos e dos últimos da história: acolhe os “imorais” (prostitutas e pecadores), os “marginalizados” (leprosos e doentes), os “hereges” (samaritanos e pagãos), os “colaboradores” (publicanos e soldados), os “fracos e os pobres” (que não tem poder nem saber); os que não tem lugar passam a ser incluídos.
Jesus se revela “excêntrico” com relação aos sistemas, poderes e costumes de seu tempo, e isto numa dupla dimensão: - o centro, para Jesus, está nas margens,
- os marginalizados e excluídos são trazidos por Ele para o centro.
Jesus assume a tal ponto a indigência e a fragilidade do ser humano, que aqueles que o encontram e o escutam reconhecem de imediato estar diante de um homem profundamente humano. Jesus “entra” na realidade, sem discriminá-la nem classificá-la. Simplesmente acolhe tudo quanto é desprezível e aparentemente desprovido de valor. A atuação de Jesus revela-se como abraço da realidade. Sua visão de vida não o afasta da realidade; manteve-se sempre em contato com a fragilidade da existência; sentou-se à mesa com pecadores e misturou-se com prostitutas; voltou-se para aqueles pelos quais as pessoas não nutriam qualquer interesse: os pobres, os oprimidos, os excluídos...
Jesus derruba as barreiras da religião e raça. A revelação messiânica se expande como o sol do meio-dia e atinge a todos, sobretudo aqueles de “má-fama”. O Reino encarna-se na história dos pequenos e desprezados. O vinho novo faz arrebentar os odres velhos.
A partir da fragilidade, Jesus impulsiona o salto para a vida; Ele reconstrói o ser humano na própria raiz do seu ser, precisamente onde ele se revela limitado, frágil. Pois é quando se reconhece fraco e limitado que o ser humano se abre para Deus e para os outros; ele sente-se necessitado de salvação; sua indigência e fragilidade fazem-no disponível, aberto à graça de Deus e lhe permitem abraçar o dom da salvação. Por isso, o específico da vida cristã é buscar, através do seguimento, fazer e viver o que fez e viveu Jesus: adotar as atitudes, o olhar e a capacidade de contemplação da realidade que o mesmo Jesus adotou.
No seu “exceder-se”, Jesus abraçou diferenças e novos horizontes. O Seu ministério ultrapassou as fronteiras. Convidou-nos a tomar consciência da ação de Deus em lugares e pessoas que estamos inclinados a evitar: cobradores de impostos, doentes, prostitutas, pecadores e pessoas de todos os tipos, que eram marginalizadas e excluídas. Jesus “deslocou” Deus do Templo para as periferias.
Como água que dá vida a todo aquele que tem sede, Jesus mostrou-se interessado por todas as zonas áridas do Seu mundo. O Reino de Deus, que pregava constantemente, tornou-se uma visão de um mundo onde todas as relações são reconciliadas em Deus. E foi nas “fendas da humanidade” que o próprio Jesus revelou o novo rosto do Pai e entrou em comunhão com Ele. Jesus nos aponta o Deus presente e atuante nos meandros de nossa história, de nossas feridas, de nossos fracassos...; Aquele que não tem vergonha de se aproximar e de se misturar com a pobreza e a fragilidade dos seus filhos; é o Deus santo que mergulha e santifica toda nossa existência. Ele se revela como um “Deus errante”, que corre ao encontro daqueles que estão perdidos.
Nas encruzilhadas desafiadoras de hoje somos chamados a estabelecer, também com aqueles que não compartilham nossa fé, nem são de nossa cultura, mentalidade..., relações de proximidade, reciprocidade e intercâmbio; somos movidos a compartilhar com eles obscuridades e perguntas e também momentos de luz e de revelação.
A partir das “fendas da humanidade” se faz visível o rosto Deus que toma partido pela vida de qualquer ser humano e que nos chama a fazer-nos presentes nos lugares onde essa vida está ameaçada, algo que foi sempre a “especialidade de Jesus”.
Uma profunda experiência cristã nos faz “virar a cabeça” e dirigir nosso olhar para as “margens”, para as “periferias” da história... comprometendo-nos com os prediletos de Deus.
Textos bíblicos: Mt. 21,28-32
Na oração: Nossa vocação é a de construir pontes em situações de fronteira. Num mundo dilacerado pela violência, preconceito, indiferença... como você coopera com o Senhor para uma “globalização na solidariedade”?
* O papa Francisco nos dirige um contínuo apelo a viver a “cultura do encontro” em meio a uma “cultura da indiferença”. Concretamente: qual seria sua “ajuda” específica e original neste grande empreendimento?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Ou está com inveja, porque estou sendo bom? (Mt 20,15)
Sabemos que toda parábola é um relato provocativo, instigante, que envolve o ouvinte... A partir de conceitos simples, tomados da vida cotidiana e que todo mundo conhece, a parábola projeta nossa consciência para um horizonte maior; por estar profundamente conectada à vida, toda parábola mantém sua atualidade através do tempo e das culturas.
O objetivo das parábolas é substituir uma maneira míope de ver o mundo por outra, aberta a uma nova realidade cheia de sentido; igualmente, elas ativam a olhar o mais profundo de nós mesmos e a descobrir possibilidades ainda não conhecidas. A parábola revela uma pedagogia que permite não dizer nada a quem não está disposto a mudar, e a dizer mais do que se pode dizer com palavras a quem está disposto a escutar. Quem a escuta, deve deixar transparecer em sua presença a mensagem do relato e começar a viver de acordo com o que foi narrado.
A parábola, em si mesma, dá o que pensar, pois questiona nossa maneira de ser, nos diz que outro mundo é possível e espera de nós uma resposta vital. Nesse sentido, as parábolas de Jesus não foram dadas por concluídas; elas estão sempre abertas às novas realidades dos ouvintes; por isso, não podem ser entendidas em atitude passiva, pois elas abrem espaço para que cada um entre nelas de maneira criativa. A parábola não é verdade fechada, mas verdade dialogada, onde todo ouvinte deve interpretá-la com sua vida.
Em toda parábola existe um ponto de inflexão que rompe a lógica do relato. Nessa quebra se encontra a verdadeira mensagem. Na parábola do evangelho de hoje, a ruptura se produz no final do relato. É evidente que, em chave de lógica econômica, esta parábola é estranha, fora do normal. Mas Jesus, semeador de parábolas do Reino, sabe que há uma lógica mais alta, a do poeta criador.
Esta é a lógica da gratuidade e da bondade do dono da vinha que se expressam no gesto generoso de pagar a mesma quantia para os trabalhadores que foram chamados em diferentes horários do dia. O contexto da parábola é a controvérsia de Jesus com as autoridades judaicas por sua contínua relação com pessoas de duvidosa reputação como os publicanos, pecadores, enfermos, crianças, pagãos e mulheres. Precisamente aqueles que eram considerados impuros e, portanto, excluídos do círculo de santidade.
Com a parábola do dono da vinha que contrata trabalhadores, Jesus não pretende dar uma lição de relações trabalhistas. Qualquer referência a esse campo não tem sentido. Jesus fala da maneira de comportar-se de Deus para conosco, que está para além de toda justiça humana. Ele nos desafia a entrar em sintonia com esse modo de agir original e gratuito de Deus, contrário à nossa mentalidade utilitarista. A partir dos valores de justiça que manejamos em nossa sociedade, será impossível entender a parábola.
O proprietário daquela vinha tinha uma estranha forma de organizar sua empresa agrícola; não parecia se importar muito com o dinheiro que investia na mão de obra. A relação entre diária e tempo trabalhado não se ajusta aos cânones empresariais do nosso mundo capitalista: não havia feito nenhum MBA em “racionalização de recursos humanos”, “índices de produtividade” ou “salários mínimos, máximos benefícios”... Incompreensível sua atitude: pagou a todos igualmente sem valorar tempo e trabalho realizado.
A partir da lógica humana, não há nenhuma razão para que o dono da vinha trate com essa deferência ao trabalhador de última hora. Por outra parte, o proprietário da vinha atua a partir do amor absoluto, coisa que só Deus pode fazer. O que a parábola nos quer dizer é que uma relação de “toma lá e dá cá” com Deus não tem sentido. O trabalho na comunidade dos seguidores de Jesus deve fundamentar-se no modo de agir de Deus e ser totalmente desinteressado.
O sistema religioso do tempo de Jesus centrava a prática religiosa no mérito e no pagamento. A salvação se havia convertido num mercado de compra e venda. Jesus questiona a fundo esta mentalidade que tanto mal fez ao povo. A salvação é dom gratuito de Deus. E a graça, que é sempre surpreendente, tem a ver com o amor misericordioso. Deus não maneja nossos esquemas contábeis de rendimento e lucros. Para Deus, tanto os primeiros como os últimos são objeto de seu imenso amor e misericórdia.
Na realidade, o que está em jogo na parábola é uma maneira de entender a Deus, completamente original. Tão desconcertante é esse Deus de Jesus que, depois de vinte séculos, ainda não o temos compreendido. Continuamos pensando em um Deus que retribui a cada um segundo suas obras. Uma das travas mais fortes que impedem nossa vida espiritual é crer que podemos e temos que merecer a salvação.
O dom total de Deus é sempre o ponto de partida, não algo a conseguir graças ao nosso esforço. O caminho de cada pessoa é saber-se filho(a) de Deus e comprometer-se na construção do Reino, sendo este um caminho de conhecimento que dura toda a vida. Uns tem o privilégio de compreendê-lo ao amanhecer; outros, no meio da manhã, dão-se conta de que estão sendo chamados; e ainda ao cair da tarde, uns quantos mais entendem que são enviados; por fim, ao anoitecer, todos receberão o pagamento pela sua entrega, seu esforço e sua confiança em Deus.
Considerando o denário da parábola como o amor total de Deus, que não pode ser fragmentado, que não faz distinções e que não considera ninguém como forasteiro ou excluído, é preciso e urgente colocá-lo em circulação como “moeda única mundial”. O amor de Deus não se fraciona como o dinheiro. Ele é total; paga sem importar-lhe quando as pessoas se deram conta de sua presença. No amor misericordioso de Deus estão implícitas a justiça e a alegria. E a justiça aqui significa “ajustar-se ao modo de agir de Deus”.
Se sairmos de nossos esquemas e entrarmos em sintonia com o modo de agir de Deus, não teremos dificuldades em entender a estranha maneira d’Ele realizar os pagamentos; também nós passaremos a desejar aos nossos irmãos aquilo que Deus sempre desejou: que todos compartilhem igualmente do seu amor surpreendente, superando a estreita visão do mérito e da recompensa; também vibraremos de alegria quando aqueles que, ao cair da tarde, vierem se integrar à nobre missão de construtores do Reino e receberem o único pagamento possível: o denário do Amor de Deus.
Não percamos tempo pensando e esperando ingenuamente que o FMI ou qualquer outro organismo financeiro vá interessar-se por esta mudança de moeda, já que ela nem é cotada nas bolsas, nem é protegida em paraísos fiscais, nem flutua seu valor conforme convenha a quem move os fios financeiros.
O denário da parábola é cotado no coração humano e quem compreende seu valor quererá compartilhá-lo com cada pessoa que habita este mundo, começando pelos que “ao cair da tarde” estão parados: refugiados, enfermos, excluídos, crianças sem acesso à educação nem atenção sanitária, anciãos que não podem ter uma velhice digna e feliz junto às suas famílias, imigrantes, jovens sem futuro enredados pela violência, profissionais que não podem exercer o que sabem... São tantos os que aguardam!
Quando conseguirmos a “mudança de moeda” em nosso coração, estarão em alta valores como a paz, a tolerância, a fraternidade, o equilíbrio entre a natureza, a justa satisfação das necessidades... O amor será a única “moeda” aceita por todos; o amor será o único meio para fazer que as diferenças caiam, as distâncias desapareçam, os erros se emendem e a violência se extinga, o perdão sane e o abraço reconforte... Está em nossas mãos a possibilidade e a esperança de concretizar tudo isso.
Texto bíblico: Mt 20,1-16
Na oração: “Por que afligir-se em comparações? Não queira ser o melhor, se certamente não é o pior.
Contente-se por ser diferente na missão que recebe para que algo em você passe a enriquecer os outros.
Deixe-se acompanhar pela eterna surpresa e, encantado, exercite a divina criatividade” (Frei Cláudio)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Senhor, quantas vezes devo perdoar...?” (Mt 18,21)
Pouca gente, mesmo entre cristãos, compreende o sentido profundo do perdão. A maioria pensa que é forma de anistia do sentimento, esquecimento, ato interno capaz de compreender o ofensor e desculpá-lo no fundo do coração misericordioso; para uns o perdão significa passar por cima de um erro ou violência; para outros, o perdão é próprio das pessoas frágeis...
De fato, o perdão não se encaixa confortavelmente dentro dos padrões naturais do comportamento humano. Ele não nasce espontâneo dentro do coração do ser humano. A capacidade de perdoar a si mesmo ou aos outros é a marca registrada de uma personalidade madura. Representa considerável avanço em relação ao mais primitivo desejo de vingança, retaliação e revide.
O perdão ataca, com todo vigor, aquilo que parece ser uma lei de nossa história. Isso porque a lógica que regula as relações inter-humanas é regida pela lei do mais forte, ou, no melhor dos casos, pela lei da reciprocidade, da equivalência, como norma de justiça.
No perdão, assume-se uma atitude que não contabiliza mesquinhamente o que se fez; deve-se ter um gesto inovador, um gesto criativo. Caso contrário, fica-se prisioneiro da lógica repetitiva da violência. Perdoar é ir além do princípio de retaliação. Por isso é uma atitude atrevida e ousada.
O perdão representa a inovação: cria espaço onde já não impera mais a lógica da norma judiciária. Perdão não é esquecimento do passado, é o risco de um outro futuro que não aquele imposto pelo passado ou pela memória ferida. É convite à imaginação. É preciso aventurar-se no encontro com o outro.
Quem perdoa sabe estar correndo um risco, abandonando o ajuste de contas pela força ou então renunciando à força do direito. Mas sabe também que, sem esse risco, a história não terá nenhum futuro e a violência irá se repetindo indefinidamente.
Sabemos que a violência não tem regra em si mesma, é pura repetição. Já o perdão quebra a lógica do “olho por olho, dente por dente” e cancela o movimento repetitivo da violência. Quem perdoa sai fora desse jogo, arriscando a própria vida. O perdão quebra a cadeia lógica própria das relações humanas, submetidas ao sistema de equivalência da justiça (cf. Mt. 5,38-42).
O seguidor de Jesus, ao entrar em sintonia com o Deus fonte do perdão, ultrapassa toda imposição da justiça legal e abre espaço a uma nova relação com o outro. Assim, o perdão, transformando as relações humanas, possui a capacidade para revelar o rosto original de Deus.
O perdão é um ato não-humano, parece mesmo ser um ato puramente divino. Joan Chittester chama o perdão “ o mais divino dos atributos divinos”. “Perdoar - ela afirma -é ser como Deus”. Mas este ato divino nos é revelado que ele está ao nosso alcance, porque Deus nos convida a ele. O perdão é divino porque, para o ser humano, ele é verdadeiramente divino em seus efeitos e em seu próprio processo.
Por isso, Jesus insiste fortemente sobre o perdão, porque este é uma necessidade vital quando a vida foi ferida. Como presença visível do perdão, Jesus se dirige a cada um com a força da torrente que jorra para a vida eterna e quer conduzir a todos para aquela Fonte de comunhão que o Pai deseja, a fim de que toda a vida esteja exposta ao Seu Amor.
Perdão é, em última análise, uma forma de amor, um amor que acolhe o outro na sua fragilidade. Vai ao encontro do causador da ofensa com uma compaixão que brota de uma consciência das próprias limitações, abrindo um novo tempo, sem o veneno do ressentimento e da amargura.
O perdão é superlativo do amor. Reinhold Niebuh descreveu o perdão como a “forma final do amor”. Perdão é amor que reconstrói o passado. Só quem doa amor ao ofensor dá-lhe as condições profundas de contrição, compunção, compaixão e arrependimento, as quatro vias através das quais o ser humano pode renascer de si mesmo e das trevas, trocando a morte pela vida.
Por ser o gesto mais difícil e elevado, o perdão é a única forma de permitir ao ofensor a entrada de amor no seu coração. Qualquer forma de cobrança, punição e vingança reforça a crueldade do ofensor e, de certa forma, vai fazê-lo sentir-se justificado. Por isso, a originalidade do cristianismo está na descoberta da grandeza do ser humano, no exercício da única força capaz de mudar o mundo: o amor real. Não há revolução maior.
O perdão, então, resitua as pessoas na grande corrente da vida; busca restabelecer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem e a vida que as rodeia. O perdão é uma experiência forte que reconecta com a vida; ele quer abrir uma porta à vida, em um muro fechado de dores, de sentimentos feridos, de autoagressividade. O perdão busca estabelecer uma aposta pela vida. É um ato de realismo, em profundidade e a longo prazo.
Podemos falar, então, que o perdão ativo é terapêutico pois desencadeia um processo de conversão, mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura o universo relacional e abre a interioridade à alteridade. O perdão reconstrutor, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para desvelar nossa própria interioridade.
A força criativa do perdão põe em movimento os grandes dinamismos da vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada. Por isso, o perdão é expansivo, ele abre um novo futuro e desata ricas possibilidades latentes em cada um. Ele não se limita ao erro, mas impulsiona cada um a ir além de si mesmo; ele destrava a vida, potencia o dinamismo do “mais” e o coloca em movimento em direção a um amplo horizonte de sentido. É gesto gratuito e positivo de encontro, de acolhida, de cordialidade, que se torna hábito de vida: até “setenta vezes sete”.
O perdão é aquele que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas. Não apenas afetivo, mas efetivo. Não apenas implica mudança na disposição da pessoa que perdoa, mas leva também a modificar a situação da pessoa perdoada. O perdão liberta as pessoas para poderem cuidar de outras questões importantes na vida; é uma obra de amor para com o outro e para consigo mesmo.
O ser humano é quebradiço por dentro e por fora. Mas o perdão o redime, depositando nele algo que é maior que sua fragilidade. Trata-se de um dinamismo que o ressuscita, o vivifica e o resgata. O que era sucata, torna-se material para a construção do ser humano novo; o que era motivo de vergonha, agora é impulso confiante e esperançoso; o que era sinal de morte, agora ressurge para uma vida nova. A novidade interior se dinamiza para fora e configura, por sua vez, a modalidade do comportamento diante dos outros.
Em última análise, o perdão é um ato de fé na bondade fundamental do ser humano.
Texto bíblico: Mt 18,21-35
Na oração: O caminho para a libertação, a conversão e a reconciliação conduz a uma nova identidade. Esta se revelará e será experimentada no “colóquio de misericórdia”, com os olhos fixos no Crucificado: que fiz? que faço? que farei por Cristo?
- Fazer “memória” dos momentos em que você experimentou a força criativa do perdão do outro, ou foi presença por onde fluiu o verdadeiro perdão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles” (Mt 18,20)
Tudo na vida gira em torno das relações: com Deus, consigo mesmo, com os outros, com a natureza. Isso é especialmente verdadeiro numa comunidade cristã. Famílias saudáveis, grupos saudáveis, igrejas saudáveis, vidas saudáveis, ambientes saudáveis... falam de relações saudáveis.
No capítulo 18, Mateus recolhe uma série de afirmações de Jesus sobre a comunidade dos seus seguidores. É a primeira vez que se emprega o termo “irmão” para designar os membros da comunidade cristã. É preciso notar que o texto de hoje é continuação da parábola da ovelha perdida, que termina com a frase: “Assim vosso Pai que está nos céus não deseja que se perca nenhum destes pequeninos”.
No evangelho de hoje(23º Dom TC) é muito relevante a preocupação pela vida interna da comunidade; o texto nos adverte que não se pode partir de uma comunidade de perfeitos, mas de uma comunidade de irmãos, que reconhecem suas fragilidades e precisam do apoio mútuo para superar seus limites e erros. As rupturas nas relações podem surgir em qualquer momento, mas o importante é estar preparado para superá-las.
Jesus Cristo não só revelou a verdadeira identidade de Deus, cuja essência é relacional (cerne da doutrina cristã da Trindade), mas mostrou que o caminho para a transformação pessoal consiste, também, numa correta e justa vivência na relação com os outros. De fato, a pessoa humana não se pode realizar sem os outros. Realiza-se quando, livre e voluntariamente, conhece e é conhecida, ama e é amada, compreende e é compreendida. Precisamente, a reciprocidade das relações é a que permite integrar a igualdade e a diferença, a identidade pessoal e a identidade do outro, buscando chegar à comunhão e à unidade.
Humanamente falando, nem sempre nós nos damos conta, mas o foco em torno do qual gira toda a existência humana está na capacidade de nos relacionar e de nos comunicar. As relações humanas são o centro de tudo. A essência última de todas as ansiedades humanas manifesta-se como um problema de relações: com os pais, com os filhos, com os companheiros de trabalho, com os amigos, com os vizinhos, com os irmãos de comunidade, com as diversas culturas, raças, grupos étnicos, etc...
Relacionar-se é a grande e única finalidade da vida do ser humano: encontrar-se, viver em sociedade, colaborar, construir amizades, amores, conhecer gente...; tudo está condicionado pela potencialidade e pela capacidade de relacionar-se.
"No princípio era a relação”, afirmava o filósofo Martin Buber. De fato, a pessoa existe graças à relação e para a relação; cresce na relação e em vista da relação; amadurece e se humaniza na relação. Mas é na relação que emergem nossas riquezas e nossas pobrezas humanas. Todos temos limites, bloqueios que fragilizam os laços comunitários. É importante aceitar que existem tais limites, aprender a reconhecê-los, ajudando mutuamente a superá-los e acolhendo aquilo que nos convida a ser mais criativos, audazes e valentes.
A gestão das relações interpessoais exige equilíbrio e sabedoria. A partir das limitações e fragilidades também podemos nos encontrar com os outros. Precisamos de sabedoria para aceitar a realidade, acolhê-la e cuidá-la, para ir transformando por dentro. Não podemos nos conformar com a mediocridade da comunidade. Toda a comunidade é impelida a um “mais” que brota do modo de proceder e viver de Jesus.
O sentido da comunidade cristã, portanto, é de ajuda mútua. “Ajudar” pede um coração magnânimo, grandeza de sonhos, de ânimo e de desejo; mas, ao mesmo tempo ela nos convida à humildade, ou seja, abrir-nos às necessidades do outro, descer ao nível do outro, renunciando nossos próprios critérios, modos fechados de viver... “Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor. Trata-se, isso sim, de propor com qualidade, com firmeza, com proximidade, com compromisso pessoal. Isso requer presença gratuita, desinteressada, centrada no bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo o outro crescer em liberdade.
A comunidade deve ser sacramento (sinal) de salvação para todos. Atualmente não temos consciência dessa responsabilidade. Passamos friamente pelos outros. Seguimos fechados em nosso egoísmo, inclusive na vivência religiosa. A falha mais letal de nosso tempo é a indiferença. Martin Descalzo a chamou “a perfeição do egoísmo”. Outro a define como “homicídio virtual”. Seguramente é hoje o pecado mais difundido em nossas comunidades cristãs.
O papa Francisco continuamente nos apela a passar da “cultura da indiferença” à “cultura do encontro”; sua intenção é desmascarar a indiferença que prevalece em todos nós, a superficialidade das relações, e buscar um encontro verdadeiro e profundo com o outro.
Nessa perspectiva, a comunidade é o lugar da “correção fraterna”; e o critério para a correção não é a lei mas a presença de Jesus que está no meio da comunidade. Quando a correção é feita a partir da lei, assumimos a posição de juízes, rompemos a comunhão, criamos categorias de pessoas (perfeitas e imperfeitas) e caímos no legalismo e moralismo.
Todos devem “corrigir-se” mutuamente, tendo os olhos fixos em Jesus; no seguimento de Jesus ninguém chega à “perfeição” a ponto de poder corrigir os outros. Por isso, a correção fraterna é um estilo de vida que não se limita aos erros e fracassos; ela implica em ativar mutuamente os dons e capacidades que ainda não puderam se expressar. A presença de Jesus no meio da comunidade é sempre horizonte inspirador para que todos cresçam na identificação com Ele. Nesse processo de crescimentos os ritmos são diferentes para cada pessoa; não se trata de nivelar a todos mas de respeitar os processos, as circunstâncias, as condições de cada seguidor(a) de Jesus. A correção significa, então, estima e confiança no outro, pois ele é muito maior que suas falhas.
Educados pela misericórdia de Deus, todos somos chamados a exercer o ofício da “correção fraterna”, para que a comunidade possa se revestir sempre mais do modo de ser e proceder de Jesus.
A correção fraterna, pois, não é tarefa fácil; e isto por duas razões: em primeiro lugar, aquele que corrige pode humilhar àquele que é corrigido, querendo realçar sua superioridade moral. Aqui temos que recordar as palavras de Jesus: como pretendes tirar o cisco do olho do teu irmão se tens uma trave no teu?
Em segundo lugar, aquele que é corrigido pode rejeitar a correção por falta de humildade. Diante dessas duas razões necessita-se de um grau de maturidade humana que não é fácil de alcançar. No entanto, o importante não é a norma concreta, mas o espírito que a inspirou é que deve inspirar-nos na maneira de nos conduzir diante das rupturas das relações, visando sempre a construção da comunidade.
Por isso, onde reina a competência desleal, nós anunciamos a lealdade; onde reina o empenho em colocar-se acima dos outros, nós anunciamos a igualdade; onde reina o afã da vaidade e da aparência, nós anunciamos o serviço; onde reina a dificuldade nas relações mútuas, nós queremos ser presenças de acolhida; onde custa solicitar favores, nós queremos estar disponíveis àqueles que clamam por ajuda; onde reina a exploração, nós anunciamos a solidariedade e a luta contra a injustiça; onde reina a indolência, a inibição, nós anunciamos e vivemos iniciativas em favor da vida...
Texto bíblico: Mt 18,15-20
Na oração: A comunidade cristã, onde você participa, é espaço instigante e inspirador, lugar do novo e das mudanças, ambiente facilitador da autonomia e da criatividade dos seus membros?
- Sua presença na comunidade: colaborativa, inspiradora, confiança no outro, espírito de serviço...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quem quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga”. (Mt 16,24)
O seguimento de Jesus implica um descentramento, um esvaziamento do “nosso próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Para poder viver o Evangelho de uma maneira inspirada, deveríamos deixar ressoar profundamente em nós essa expressão tão forte de Jesus: “renunciar a si mesmo” para poder viver com mais plenitude e transparência.
Isto não significa que Jesus tenha tomado um caminho dolorista, no qual se valoriza a dor por si mesma. Pelo contrário, Jesus vive a sabedoria da vida de onde brota a felicidade. Não vive para o “ego”, pois este busca sempre seu interesse e comodidade, mas vive ancorado naquela identidade profunda, na qual permite que a Vida flua através de si mesmo, numa atitude de aceitação ou de sintonia sábia com o Pai.
A “renúncia a si mesmo” não é um exercício de masoquismo, não é mutilar-se, nem buscar sacrifícios, nem anular-se..., Mas é descer até “o dinamismo de vida” (a força germinadora) que pulsa no próprio coração, ansioso de plenitude, de vida e de amor; é a maneira mais profunda de realização.
“Renunciar a si mesmo” é deixar de se identificar com a tirania das mensagens de nossos pequenos “egos”, que se refletem em nossa própria linguagem e autoimagem. A imagem tornou-se uma espécie de absoluto em nossa sociedade. A ela servimos e por ela somos determinados. “Renunciar a si mesmo” é um conselho sábio: significa despertar-se da ilusão e do engano, deixar de girar em torno de um suposto “eu” que não existe, para viver a comunhão com todos e com tudo e agir assim de um modo mais coerente. Aqui o “si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso eu é imprescindível para poder entrar no caminho que Jesus propõe.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e não deixar de se preocupar com seu individualismo (centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado” e atua em conseqüência, vivendo uma entrega aos outros, alcançará sua verdadeira plenitude humana. Trata-se de um ponto chave do ensinamento de Jesus, ou seja, o convite a entrar na lógica do dom, do descentramento do eu, da entrega gratuita, da superação da mera reciprocidade.
É a lógica aberta pelo Reinado de Deus, que alarga o horizonte da vida humana, enriquece as possibilidades de atuação e aumenta a criatividade no serviço. A lógica do dom implica deixar-se conduzir por Deus, conhecido através de Jesus, que é entrega de vida, misericórdia, perdão, amor infinito.
Nossa verdadeira identidade não é constituída pelos pequenos “egos” que acreditamos ser. Precisamos despertar dessa ilusão e entrar em contato com nosso verdadeiro Eu, nosso Ser e, a partir dele, olhar a vida, olhar nossa atividade e olhar os outros, a fim de viver em sintonia com quem somos em profundidade. É esse o modo de “ganhar a vida”.
Precisamos des-velar (tirar o véu) de nossos “pequenos eus”, detectar e reconhecer seus dinamismos sombrios e atrofiadores, para podermos caminhar, com mais naturalidade e leveza, para além de nós mesmos. Do contrário, eles travarão nossa vida de uma maneira tirânica.
É saudável reconhecer esses “eus” e dialogar com eles, pois de outra forma eles se fixarão em nós como rigidez ou nos transformarão em fanáticos. Rigidez e fanatismo, dureza e intolerância, legalismo e moralismo... indicam a existência de “eus” inflados que atrofiam nossa existência. A afirmação de Jesus, portanto, nos faz descobrir que por detrás do “renunciar-se a si mesmo” pulsa o desejo de desprender-se do “ego desumano” para poder expandir a vida em direção a uma ousada criatividade. O caminho da fidelidade até a Cruz vai quebrando toda falsa pretensão do “ego”, expandindo nossa vida na direção do serviço e da entrega radical.
Morrer “com Jesus” na Cruz é morrer ao próprio “ego”, para que o “eu oblativo” possa ressuscitar para uma vida nova.
Todos os caminhos autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia a si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo, contrário, para crescer ao recuperar a verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, me encontro, quando “meu eu diminui”, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus.
A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão... Aquele que quer salvar seu “ego”, perde a Vida, porque se isola numa estreita jaula ou se perde em um labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o “ego” (inclusive até “ganhar o mundo inteiro”), não pode evitar uma sensação de profunda insatisfação.
A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (paixões, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós. Ao descobrir a armadilha desse “ego” atrofiador, ao deixar de nos identificar com ele, a primeira coisa que experimentamos é uma sensação de amplitude, onde sentimos que nosso coração se expande e descobrimos que o horizonte é, na realidade, infinito.
Uma das manifestações da sociedade narcisista na qual o “eu” tornou-se a instituição máxima e o eixo do universo é a chamada cultura do “selfie”. Sociologicamente isso pode revelar a obsessão pelo protagonismo e pela sacralização do eu.
O que vale na cultura do "self" é o modo como nos apresentamos. Na imagem nos recriamos conforme nosso “self”, isto é, mostramos aquilo que acreditamos ser o nosso "eu". A imagem precisa ser perfeita, pouco importa a maneira como ela foi feita, tampouco, as circunstâncias da construção dela. Por isso, “tomar a Cruz” é uma imagem que quebra e esvazia toda pretensão de autoafirmação do eu.
É um momento doloroso pois a pessoa resiste e pode encher-se de angústias e medos ao perder o falso ponto de apoio sobre eu autônomo, impassível centrado em si mesmo. E teme o pior: perder-se, diluir-se. Somos continuamente bombardeados de afirmações sobre a necessidade de um Eu forte e integrado. O encontro com Cruz elimina o narcisismo, desmascara a prepotência e nos devolve à vida cotidiana (tempo, casa, profissão, conversação) como o único lugar no qual podemos nos encontrar com a nossa própria verdade.
“Do eu des-centrado ao eu enraizado no seguimento de Jesus”: este é o movimento de vida plena.
Textos bíblicos: Mt 16,21-27
Na oração: Aprenda a morrer aos próprios interesses mesquinhos para que os outros vivam. Há na vida muitas coisas – pequenas ou imensas – que vão morrendo e nascendo de novo, diferentes, melhores, reconciliadas...
Não permaneças na superficialidade do ego; desce mais ao fundo de ti mesmo e descobrirás a harmonia.
Teu verdadeiro ser é paz, é mansidão, é bondade. Vá mais além de teu falso ser!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Campinas-SP
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)
Já agradecemos alguma vez pelas perguntas que nos fizeram? Em um diálogo, as perguntas são a ponte entre as vozes, a confluência de corações, o brilho de luz compartilhada. Todas e cada uma delas nos fizeram crescer, mesmo aquela que parecia a mais trivial. Porque cada pergunta vem carregada de matizes, umas com carinho, outras de atenção ou de interesse, e, inclusive, algumas de desafio... Umas foram respondidas, outras não sabíamos como respondê-las, talvez nunca saberemos respondê-las...
A pedagogia de Jesus nos Evangelhos é feita de perguntas.
Jesus é um Deus que pergunta. São inúmeras as vezes em que Ele se aproxima das pessoas e as interroga. Desde o “quê buscais?” no início do evangelho de S. João, passando pelas perguntas na região de Cesareia de Filipe, “quem dizem os homens ser o Filho do Homem?”, “e vós, quem dizeis que eu sou?”, até à tríplice interpelação a Pedro, “tu me amas”?
Aquele que é a Verdade, o Caminho e a Vida, também se compõe de perguntas.
Jesus, com sua pedagogia fundada em perguntas, nos coloca diante do mistério de Sua vida e de Suas opções. Responder à pergunta “quem é Ele” é comprometer-se com Ele, é assumir o caminho d’Ele, é arriscar-se n’Ele. Jesus aproxima-se das pessoas. Não procura convencer, argumentar, ou fazer seguidores à base de discur-sos. Suas perguntas ousadas colocam em crise visões distorcidas, falsas concepções e idéias pré-conce-bidas a respeito d’Ele. Com sua pergunta Jesus provoca uma radical decisão pró ou contra Ele, uma clara opção pró ou contra o Reino. Um cristão que nunca tenha proposto seriamente esta questão a si mesmo, de uma maneira vital, não está maduro na maneira de viver o seguimento de Jesus Cristo.
Como cristãos nós nos definimos mais pelo perguntar do que pelo responder. “Perguntar” é buscar, é despertar a capacidade de nos deslumbrar diante deste mundo fenomenal que somos nós e diante desta realidade que nos circunda.
A espiritualidade cristã reacende em nós as grandes “interrogações existenciais”:
“Quem somos nós? – Quê estamos fazendo? –
Por quê estamos fazendo? – Para quem estamos fazendo?...”
A índole interrogatória é traço típico da espiritualidade cristã; o perguntar é ousado; perguntar desafia, tem dose de irreverência; são perguntas de “conversão”, de mudança, que abrem para o futuro, para o novo. A pergunta é movimento, é vida... e suscita resposta viva, criativa, surpreendente... e inesgotável. Não são perguntas para começar a caminhar, mas para reforçar nosso espírito de aventura e mobilizar nossos recursos interiores na busca do “sentido” de nossa identidade e da missão que realizamos. Tais perguntas trazem à tona nossas motivações, nossas formas de agir, de amar e de sentir... A busca é interior, o caminho é pessoal e coletivo, a resposta tem um toque de eleição comunitária.
Desde o início, ainda no paraíso, Deus buscou o ser humano com uma pergunta: “onde estás?”. Deus nos busca continuamente com suas perguntas. Nós somos resposta a essa pergunta primordial. Igualmente, o ser humano é um amontoado de perguntas, é um ser que pergunta. Com pouco tempo de nascimento e quando vai se abrindo à aventura da vida começam suas perguntas: “por quê?”... um infinidade de “por quês?”
Também somos uma pergunta que fazemos a Deus e esperamos resposta. Quantas gostaríamos de fazê-las a Deus? Mas a resposta só virá quando o nosso coração estiver preparado para escutá-la: sem medo, sem angústias, em atitude de espera e confiança.
“Sê paciente com tudo o que ainda não está resolvido em teu coração... Procura amar tuas próprias perguntas... Não busques as respostas que não podem ser dadas, porque não serias capaz de vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Vive agora as perguntas. Talvez assim, gradativa-mente, sem dar-te conta, possas algum dia viver as respostas” (Rainer María Rilke).
De fato, habitamos nas perguntas. Viver à escuta das interrogações nos mantém despertos no caminho. São as perguntas que suscitam em nós o assombro frente à riqueza da realidade, a preocupação frente o drama da humanidade, a disposição frente ao futuro..., exigindo-nos assim viver continuamente numa atitude de escuta.
A mediocridade das respostas formatadas paralisam e fecham as portas às novas possibilidades. As perguntas, ao contrário, são o fio de ouro em meio ao cascalho que mobilizam o garimpeiro a buscar sem cansar. As respostas cortam o movimento, atrofiam a curiosidade, matam a criatividade e o espírito de a-ventura; elas impedem a mobilização dos recursos interiores da pessoa na construção do conhecimento, levando-a à apatia e à acomodação.
O momento é de tecer perguntas onde há mais respostas formatadas e fechadas. Urge, pois, implementar e desenvolver hábitos, processos, que nos ajudem a sermos mais intuitivos através das perguntas que abrem acesso às reservas interiores de criatividade e imaginação, frente aos desafios cotidianos.
A pregunta “quem é Jesus” não pode ser respondida simplesmente com os dogmas. A resposta deve ser prática, brotar do chão da vida. Nossa vida é a que tem que dizer quem é Jesus Cristo para nós. “Quê diz tua vida de mim?” Do esforço dos primeiros séculos da Igreja por compreender a Jesus, devemos fazer nossas, não as respostas que deram, mas as perguntas que foram feitas.
A verdadeira pergunta é: “quê é, que significa Jesus Cristo em nossa vida?” Não basta dizer que cremos em Jesus. É preciso nos perguntar: em quê Jesus cremos e quem é Jesus para nós?
Texto bíblico: Mt. 16,13-20
Na oração: nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação da pessoa de Jesus é também desvela-mento do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col 3), ou seja, revelação da verdade do eu, onde descobri-mos os traços de nossa própria fisionomia.
Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim?” – se não me pergunto ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor?” Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor.
O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre...” (Lc 1,41)
A festa da Assunção de Maria nos oferece uma privilegiada oportunidade para aprofundar o mistério de toda vida humana. A todos nos preocupa qual será meta de nossa existência. Para grande parte do povo católico, a festa de hoje, juntamente com a festa da Imaculada, é a festa de Maria. A Imaculada marca o começo de sua história, a Assunção marca o destino final. Entre ambos “mistérios” ocorre o transcurso de sua vida, numa contínua identificação com Deus, ao lado da vida de Jesus.
Porque “assumiu” Deus em sua vida, Maria foi “assumida” totalmente por Deus; ela deixou Deus ser grande na sua vida; por isso, Deus a engrandeceu plenamente. Realiza-se, portanto, em Maria a situação final, já dentro da história, situação prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade de toda a sua vida.
Sabemos que o encontro definitivo em Deus só acontece quando preenchemos de sentido os “encontros” com aqueles(as) que cruzam nossas vidas. No relato do Evangelho de Lucas, indicado para a festa de hoje, há duas mulheres, Maria e Isabel, que experimentaram profundamente o dom da gratuidade, e seu lugar de carência se converteu em lugar de abundância. As duas descobriram o dinamismo curador das relações e a riqueza que os encontros pessoais revelam.
As relações que nos constituem são o tecido pelo qual circula nossa abertura a Deus e por onde crescemos em humanidade, acolhendo e sendo acolhidos pelos outros. Vivemos em um mundo hiperconectado, em contato permanente e presente, ao mesmo tempo, em todos os lugares. O mundo, nossa vida, se converteu num “chat” contínuo. No entanto, em meio a este “chat” universal, a conversação emudeceu; a maior parte de nossas “conversações” tornaram-se prisioneiras das telas (celulares, tablets, smartphones, internet). Corremos o risco de reduzir a comunicação à conexão. Banalizam-se os conteúdos da conversa, mas também são amputadas dimensões fundamentais da experiência da comunicação, sobretudo a presença física. Sem essa presença, sem o encontro pessoal, não é possível o diálogo e a verdadeira comunicação. Este empobrecimento da comunicação vivente com o outro, ou a atrofia e medo de um face-a-face, é sinal claro de uma profunda desumanização.
O “mistério da visitação” nos possibilita recuperar o sentido e o dinamismo de um encontro interpessoal. O encontro é uma realidade inter-humana dinâmica e, até certo ponto, tem algo de arriscado e imprevisível, derrubando todas as nossas prévias tentativas de controlá-lo. Podemos planificá-lo preparando estratégias; podemos acolhê-lo cheio de expectativas ou, pelo contrário, sem elas, esperando uma mera formalidade, repetição de outras situações semelhantes; podemos nos mostrar desejosos ou desconfiados, seguros ou ansiosos... De repente, algo inesperado acontece, na outra pessoa, ou em nós mesmos, ou no contexto, convertendo aquele encontro numa situação única e original, afetando nosso viver ou transformando nosso eu profundo.
O evangelista Lucas nos apresenta uma visita inesperada: a visita daquela que não permanece fechada nem ensimesmada em seu mistério; a visita daquela que se sente impulsionada a sair de si mesma para colocar-se a serviço daquela que está necessitada de ajuda. Uma visita alegre, espontânea e gratuita, porque cheia da experiência de Deus; Maria que faz Isabel sentir a alegria de uma maternidade não esperada e Isabel que faz Maria sentir as maravilhas que Deus realizou nela. Uma visita que se expressa em dois cantos de louvor e ação de graças: “Bendita és tu que acreditaste” e “Minha alma engrandece o Senhor”.
As duas mulheres se encontram em diferentes momentos vitais: Isabel na terceira etapa de sua vida, Maria quase na primeira, entrando na segunda. Uma é estéril e anciã, a outra, jovem e virgem, ambas portadoras de uma vida maior que elas mesmas, conhecedoras do mistério que crescia em seu interior. Devido à sua gravidez, as duas se encontram fora da norma social, do estabelecido. Isabel é idosa para poder conceber, e Maria está grávida sem estar casada. Ambas deviam sentir não só alegria no abraço, mas também a comoção e as dúvidas: “quê vai acontecer?”, “como vamos ajeitar as coisas?”...
Elas apoiam-se mutuamente no momento no qual estão, na situação que atravessam; reconhecem-se e se confirmam; estabelecem um vínculo entre elas, aceitam-se mutuamente; não se julgam nem valoram em função do que a sociedade considera correto ou incorreto; compreendem o que significa para cada uma delas que algo novo está crescendo em seu interior.
Maria não vai só servir a Isabel; ela precisa de alguém que a partir de sua experiência lhe diga: “vai em frente, que isso é de Deus”. Necessita que Isabel a confirme e a bendiga. E Isabel, por sua vez, necessita agradecer o sonho de Deus que as duas compartilham e que se tornou possível. Isabel e Maria se convertem cada uma em comadre, em parteira da outra; a partir de seus diferentes momentos vitais, vão se ajudar a esperar e a passar o processo do “dar à luz”. Na vida nova que está se gestando nelas, no secreto, anseiam em uníssono para trazer ao mundo algo de Deus que estava oculto.
As duas sabem de espera e de dores de parto. O parto não é um fato isolado e acontece nele a contração e a relaxação, a dor e o prazer, a posse e o desprendimento, a tristeza e a alegria, o medo e a confiança. Isto que as parteiras mencionam como momentos do parto, do “dar à luz”, são momentos de nossa vida, de nossos encontros. Todos nos reconhecemos aí. Somos parteiros uns dos outros, e necessitamos cuidar desses processos cotidianos onde a vida do Espírito se manifesta como luz da vida.
À sombra do encontro entre Maria e Isabel e contemplando o modo de visitar e de ser visitado, agradecemos o tecido relacional que configura nossas vidas. É um tempo para orar os encontros, para considerar aqueles que precisamos continuar alimentando e aqueles que se romperam e que queremos reparar. Agradecer os encontros que nutrem nossa vida. Trazer ao coração as pessoas significativas que nos fizeram provar o sabor do amor em nós e seus bons efeitos. Recolher agradecidamente os pequenos gestos de amor, de carinho, de escuta, de confiança, de paciência... que tiveram conosco.
Há visitas que não significam muito: só servem para matar o tempo e “jogar conversa fora”. E há visitas que despertam vida, que faz saltar a vida divina que carregamos dentro de nós. Por isso, todos somos seres carentes de “mais visitações”. Visitações que despertem nossas possibilidades e sonhos, visitações que nos façam saltar de alegria, visitações que nos ajudem a reconhecer as maravilhas que Deus realiza em nós e nos outros.
Isabel e Maria se fazem valer mutuamente e despertam o melhor que há em cada uma. Viveram uma história de agradecimento e de libertação, se encontraram a partir da alma, a partir do mais profundo de si mesmas e se ofereceram mutuamente palavras amigas, palavras de encorajamento e de sabedoria. Elas nos ajudam a nos perguntar: Quê tipo de história relacional queremos viver? Uma história a partir do ego ou a partir interioridade?
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: sua casa, lugar de visitação e encontro, espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda...?
Ou, casa cercada de parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada..., impedindo o acesso até mesmo dos mais próximos (parentes, amigos)?
- Seja uma casa sempre aberta: “entrada franca”;
Casa, lugar do lava-pés, do mandamento novo, da amizade, da visitação...
Casa, lugar de unção-acolhida, serviço e cuidado...
Casa, lugar da gestação de novas vidas, da experiência de nascimentos permanentes...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Campinas-SP
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