“Põe o teu dedo e olha as minhas mãos; estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (Jo 20,27)
O que os textos pascais querem expressar com a palavra “ressurreição” é a chave de toda a mensagem cristã. Mas é algo muito mais profundo que a reanimação de um cadáver. Sem essa Vida que vai mais além da vida, nada do que dizem os evangelhos teria sentido. Os relatos das aparições do Ressuscitado é a maneira de transmitir a vivência pascal dos discípulos, depois da experiência da paixão e morte de Jesus. O que os evangelistas querem comunicar aos demais é a experiência pascal de que Ele continua vivo e, além disso, está comunicando a eles essa mesma Vida. Esta é a mensagem de Páscoa.
O relato pascal deste 2º domingo da Páscoa é a chave para entender o sentido de todas as aparições pascais, que não pretendem nos dizer o que aconteceu em Jesus, mas nos transmitir a vivência interior dos discípulos.
A experiência pascal demonstra que somente na comunidade se descobre a presença de Jesus vivo. A comunidade é a garantia da fidelidade a Jesus. É a comunidade que recebe do Ressuscitado o principal mandato de anunciar a Boa Notícia, de ser sinal do perdão, de comunicar a paz... Ele é para a comunidade a fonte de vida, referência e fator de unidade. A comunidade cristã está centrada em Jesus e somente nele.
“No primeiro dia da semana”: o Ressuscitado dá início à nova Criação, no primeiro dia de uma nova semana; é o tempo de outra criação, desta vez definitiva. A criação do mundo havia durado seis dias e, no sétimo, Deus descansou. O “dia oitavo” é o dia primeiro da criação definitiva. A nova criação do ser humano, que Jesus realizou durante sua vida, culmina na cruz, no dia sexto, e chega à sua plenitude na Páscoa. Em Jesus ressuscitado, a Criação inteira chega à sua plenitude. O Ressuscitado é o Cristo Cósmico. S. Paulo vai dizer que “Cristo é tudo em todas as coisas” (Col. 3,11) e “tudo subsiste nele” (Col. 1,16). Ele recapitula tudo. Por isso a Epístola aos Efésios afirma: “importa unir sob uma só cabeça todas as coisas em Cristo” (1,10).
Jesus se manifesta, se põe no meio dos discípulos e os saúda. Não são eles que buscaram a experiência do encontro; tudo foi iniciativa do Ressuscitado. Os sinais de seu amor (as mãos e o lado) evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Não há lugar para o medo da morte. A verdadeira vida ninguém poderá tirar de Jesus, nem tirar deles. A permanência dos sinais indica a permanência de seu amor. A comunidade tem a experiência de que Jesus comunica vida.
João é o único que desdobra o relato da aparição aos apóstolos. Com isso personaliza em Tomé o tema da dúvida, que é capital em todos os relatos de aparições. Tomé tinha seguido Jesus, mas, como os outros, não o havia compreendido totalmente. Não podia conceber uma Vida definitiva que permanece despois da morte. Separado da comunidade, não tem a experiência de Jesus vivo; está em perigo de perder-se. Uma vez mais se destaca a importância da experiência partilhada em comunidade.
Temos aqui outro ensinamento chave: os testemunhos nunca são suficientes, não podem suprir a experiência pessoal da nova Vida; sem ela Tomé é incapaz de dar o passo. No oitavo dia, reintegrado à comunidade, Tomé pode, então, experimentar o Amor. A resposta de Tomé é tão extrema como sua incredulidade. Negou-se a crer se não tocasse as mãos e o lado transpassado de Jesus. Agora renuncia à certeza física e vai muito mais além daquilo que vê. Ao dizer – “Meu Senhor meu Deus!” – reconhece a grandeza do amor de Jesus e o aceita dando-lhe sua adesão. Ao dizer “meu”, expressa sua proximidade. Jesus cumpriu o projeto, amando como Deus ama.
A mensagem para nós hoje é clara: sem uma experiência pessoal, vivida no seio da comunidade, é muito difícil acessar à nova Vida que Jesus anunciou antes de morrer e agora está comunicando. Trata-se da passagem do Jesus conhecido ao Cristo experimentado. Sem essa mudança não há possibilidade de entrar na dinâmica da ressurreição. O fato de Jesus continuar vivo não significa nada se nós não vivemos sua mesma Vida.
A Páscoa é presença gloriosa do Crucificado. O Senhor ressuscitado é o mesmo Jesus que fez de sua vida uma contínua entrega em favor das vidas feridas e excluídas. Como sinal de identidade, como expressão de permanência de sua paixão salvadora, o Ressuscitado mostra aos seus discípulos as mãos feridas e o lado transpassado, um gesto que depois vai receber novo conteúdo frente à resistência de Tomé.
Crer e viver a Páscoa é descobrir o rosto do Crucificado nos crucificados, é descobrir a Jesus crucificado como Senhor glorioso. No fundo deste mistério está a mais profunda experiencia de solidariedade: Jesus ressuscitado está naqueles que sofrem neste mundo.
Parece que nas primeiras comunidades cristãs crer na ressurreição não foi grande dificuldade. O problema estava em unir as chagas com a glória, o ressuscitado com o executado na paixão. Dá a impressão de que havia uma certa tendência a não falar das chagas, a não recordar aquele fatídico dia em que Jesus morreu na cruz. Não é de estranhar porque, de fato, a cruz era um trauma pessoal e social, uma marca perpétua, uma exclusão para sempre. Por isso, era melhor não falar disso. Mas os evangelistas se empenham em dizer que o Crucificado e o Ressuscitado são o mesmo, que é preciso unir chagas e ressurreição. Mais ainda: acabam dizendo que uma das melhores maneiras de crer no ressuscitado é tocar suas chagas, tocar toda chaga para saná-la. Por isso, a insistência de Jesus para com Tomé: “põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos; estende a tua mão e coloca-a no meu lado”.
Tomé é a expressão do ser humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus Histórico, do Jesus das chagas nas mãos e no lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado. Provavelmente ele acreditava em Jesus, mas em um Jesus “espiritual” (puramente interior), sem necessidade do compromisso comunitário e social, sem chagas nas mãos e no lado. Provavelmente acreditava em um Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, das mãos que tocaram os pobres e doentes, do coração que amou os excluídos da sociedade.
Pois bem, contra isso, a comunidade lhe diz que é preciso “tocar em Jesus”, que o ressuscitado é o mesmo Jesus da história, o das chagas nas mãos e no lado. O Senhor ressuscitado continua sendo aquele que traz em suas mãos e no seu lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade. Este Jesus pascal continua estando presente nas chagas dos homens e mulheres de mãos machucadas, na ferida do costado dos homens e mulheres que sofrem. Não há experiência pascal sem um retorno à corporalidade do Jesus ressuscitado, que continua sendo o mesmo Jesus da História que morreu por causa do Reino de Deus.
O que importa de verdade não é o aspecto externo da ferida, a forma como Jesus apresenta seu lado aberto e suas mãos chagadas. Nova é a experiência da corporalidade transformada: o corpo de morte se tornou princípio de Páscoa. O mesmo corpo do amor concreto e da entrega, o corpo ferido com lanças e cravos, se converte assim em um sinal de ressurreição, sinal que continua presente na realidade da humanidade.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Crer na ressurreição não é ter algumas ideias religiosas, acatar alguns dogmas, confessar uma fé. É, sobretudo, um modo de amar o frágil, curar as chagas daquele que está ferido, amparar o desorientado. “Tocar” as chagas dos sofredores é uma das melhores formas de crer no Ressuscitado e de viver como ressuscitado.
Anunciemos o Jesus glorioso, porque é Páscoa; mas não esqueçamos do Jesus do madeiro, dos pobres, dos injustamente tratados pelos mecanismos sociais, políticos e econômicos. Uma ressurreição na qual não são levados em conta os mais frágeis, não é a de Jesus.
- Que chagas somos chamados hoje a tocar para curá-las?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.04.2025
imagem: Caravaggio
“Confio que todos, especialmente aqueles que sofrem e estão atribulados, possam experimentar a proximidade da mais afetuosa das mães, Maria, que nunca abandona os seus filhos; Ela que é, para o Povo santo de Deus, sinal de esperança certa e de consolação” (Papa Francisco - Bula n. 24).
Iniciamos o Tempo Quaresmal sendo convocados a refletir sobre a “Ecologia Integral”. Tal como Jesus, a natureza é também lugar do padecido, da harmonia quebrada, da bondade violentada, da beleza ferida... “A criação geme em dores de parto” (Rom 8,22).
Há uma crise ecológica que se alastra rapidamente, quebrando o equilíbrio vital que sustenta a natureza toda. O uso desordenado dos recursos naturais e o “descuido” como modo habitual de viver, faz sofrer tanto o ser humano como a própria natureza.
No entanto, a novidade do universo é expressa pelo Apocalipse: “Eis que faço novas todas as coisas” (21,5)
A Ressurreição de Jesus nos oferece uma perspectiva para ver essa novidade, enquanto a “comunidade de vida” se desenvolve e caminha em direção ao “Grande Mar Cósmico”.
À luz da Páscoa podemos afirmar: “creio na esperança da ressurreição cósmica”
O “mistério pascal” é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência. Imersos na natureza, a Ressurreição nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida.
A luz da Ressurreição ilumina toda a Criação: a vida de Cristo na vida da Terra nos traz alegria e esperança. O universo inteiro é o “habitat” do Cristo Cósmico.
A aparição de Jesus Ressuscitado no primeiro dia da semana foi entendida como a aurora do “primeiro dia” da Nova Criação de todas as coisas. À luz deste “novo dia” de Deus, Cristo aparece como o primo-gênito de toda a Criação, que reconcilia todas as coisas no céu e na terra.
O “primogênito entre os mortos” é também o “primogênito de toda criatura”, por quem todas as coisas foram criadas. A Ressurreição pulsa em nós e na natureza com o coração de Deus.
Os cravos arrancados aos pés da Cruz, a pedra removida, os lençóis dobrados dentro do sepulcro vazio, são os sinais que falam de uma fidelidade duradoura, de um cumprimento certo, de uma esperança que se cumpre, de um além que se faz sempre mais próximo, de uma vida ainda a caminho da plenitude.
A esperança é brasa, é pés, é caminho, é narrativa, é assombro, é antecipação.
Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. A esperança é o canto que empresta coragem frente os corredores escuros da história.
Os evangelistas destacam que as corajosas mulheres revelaram uma presença fundamental nos relatos da Páscoa. Elas seguiram e serviram a Jesus com seus bens pelos caminhos da Galiléia (Lc 8,1-3) e perma-neceram fiéis até o final, até a Cruz. Foram testemunhas, como tantas mulheres de hoje, da fidelidade nas situações limite, onde o que lhes cabia fazer era estar e acompanhar, na sua impotência e luto, até que emergisse a nova Vida. Foram testemunhas da semente do amor entregue, que, embora invisível no ventre da terra, vai pouco a pouco abrindo caminho para a luz, afastando pedras e abrindo sepulcros, dando à luz o novo, porque o Deus de Jesus não é um Deus de mortos, mas de vivos.
Frente à traição e a ausência dos discípulos, as mulheres foram significativas por sua lealdade. Enquanto o grupo de homens se trancou na passividade covarde, elas optaram pelo enfrentamento da realidade, vencen-do o medo, colocando-se a caminho.
Das mulheres que foram ao sepulcro na manhã de Páscoa levando perfumes podemos aprender sua capacidade de enfrentar os acontecimentos com sabedoria e audácia.
Elas são as mulheres “mirróforas”, ou seja, portadoras de perfumes, que madrugam para ir ungir o corpo de Jesus. São conscientes do tamanho da pedra e de sua impossibilidade de removê-la, mas isso não é um obstáculo em sua determinação de ir ao túmulo para fazer memória d’Aquele que abriu para elas um horizonte de sentido. A alusão ao “primeiro dia da semana” e o “nascer do sol” acompanham a entrada delas em cena, na madrugada da Páscoa: estamos no começo da Nova Criação e a luz da Ressurreição as envolve em seu resplendor.
Pela Ressurreição, romperam-se todas as amarras do espaço e do tempo. Cristo ganhou uma dimensão cósmica. A evolução se transformou numa verdadeira revolução.
A terra é o palco da vinda do Reino de Deus, por isso a ressurreição para o Reino de Deus é a esperança desta terra. Sobre esta terra, embebida em sangue, esteve a Cruz de Cristo; por isso Deus lhe permanece fiel
e afastará dela toda dor, sofrimento e morte, para Ele mesmo nela vir morar.
O Deus que ressuscita os mortos é o mesmo Deus que chamou todas as coisas do nada à existência; Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos é o Criador do novo ser de todas as coisas.
Ressurreição e Criação constituem, portanto, uma unidade, pois a ressurreição dos mortos e a destruição da morte são a completude da criação original.
“O Reino de Deus é o reino da ressurreição na terra” (Bonhoeffer).
Para os evangelistas, voltar à Galileia significou retomar e prolongar a mensagem e a proposta do Reino de Jesus. Foi ali na Galileia que Jesus começou sua vida pública e atuou como aquele que veio aliviar o sofri-mento humano, despertar uma nova esperança, com a certeza de que o Reino tinha chegado e que Deus faria mudar a forma de vida dos homens e mulheres, partindo precisamente dos mais pobres e excluídos. Dessa forma, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, dos últimos, anunciando e preparando a chegada do Reinado do Pai.
Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galileia. É ali que se devem encontrar todos os que são de Jesus (Pedro, as mulheres, os discípulos de Jerusalém), para também ali retomar e prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.
Somos já “seres ressuscitados”: sentimos hoje a urgência de seguir os caminhos de uma ética ecológica integral para que possamos nos situar, na Criação, numa atitude participativa e de cuidado responsável. Cres-ce um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental e uma vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza.
Todos os seres, vivos e não vivos, são parceiros numa verdadeira “dança cósmica”, numa grande comunhão universal. Fazemos parte de uma “rede” de relações múltiplas e recíprocas, nas quais o próprio Cristo Ressuscitado se faz presente, como fonte de vida.
Esse é o caminho do Evangelho, carregando em nossas pobres mãos, como as mulheres da Páscoa, o perfume da esperança, da Nova vida ressuscitada.
E, assim como o mau odor repele e afugenta, o bom odor atrai e convida ao seguimento.
É através do “modo cristificado de ser e viver” que os(as) seguidores(as) de Jesus exalam um bom odor, criam uma atmosfera perfumada ao seu redor.
Textos bíblicos: Mc 16,1-7 Mt 28,1-10 Lc 24,1-12
Na oração: Fico maravilhado(a) com a nova comunidade universal de vida que emerge da Noite Pascal.
A Luz da Ressurreição integra tudo.
- Considero como nosso Senhor ressuscitado revela toda a vida futura do universo como uma comunidade em evolução de esplendor e diversidade crescentes. Reflito como Cristo me leva a evoluir para uma humanidade em plenitude, vivendo uma relação plena com todas as criaturas.
- Como as mulheres “mirróforas”, tomo consciência dos aromas que levo para perfumar os ambientes com odor de morte, de rigidez, de indiferença, de medo... para que se transformem em espaços com cheiro de vida, de liberdade, de ternura e acolhida.
- Fui ungido(a) com o óleo santo no batismo, fui besuntado(a) e massageado(a) com um bálsamo cristificante. Por isso trago a força sanadora do perfume de Cristo, para ser presença esperançada em lugares que cheiram à morte e poder manifestar a beleza da vida cristã com a qualidade do meu aroma.
- Fraternizo com todas as criaturas e me faço humano em toda minha plenitude.
Páscoa: um salto para a transcendência... para o Novo Céu e Nova terra.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.04.2025
“Lacraram a pedra e deixaram ali a guarda” (Mt 27,66)
O Sábado Santo é o dia do grande silêncio: “Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne” (de uma antiga homilia de Sábado Santo: no Ofício de Leitura deste dia).
Neste dia de silêncio recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Envolve-nos a “noite sabática”, que deve realimentar a paixão pela vida.
O Sábado Santo nos fala do silêncio de Deus - “como a Divindade se esconde” (S. Inácio -EE. 196) – e nos convida a adentrar-nos no Mistério que está presente em toda existência: ausência, dor, fracasso, morte... Sem Cruz não há passagem para a Vida, não há Ressurreição.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloquente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus. Loucuras do amor de Deus. Só o amor que se entrega, salva.
Com seu sepultamento, Jesus “desce à região dos mortos”, radical solidariedade com a Criação e a humanidade inteira que, por sua vez, fazem a “travessia” da morte em direção à Nova Vida.
Neste dia, nos associamos a Jesus sepultado em sua “descida” para “subir” com Ele, arrancando de nosso próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte, para nos deixar possuir pela glória de Deus.
“Descer” com Ele para aquilo que está morto em nós (no nível corporal, afetivo, espiritual, social). A luz da presença solidária de Jesus ilumina tudo o que é sombrio em nosso interior. Ali estão presentes germes de vida que ainda não tiveram possibilidade de irromper e crescer.
Somente porque Jesus desceu nos “infernos” da vida é que pode salvar-nos deles, transformá-los em caminho. “Porque foi provado no sofrimento, pode ajudar os que são provados” (Heb. 2,18).
A “Terra crucificada”, os “crucificados da história”, os sofredores e as vítimas, são lugar de encontro com Aquele que “desceu” até às extremidades mais profundas da Criação e da Humanidade, revelando-se solidário com todos; Aquele que viveu a Paixão em favor da vida é sepultado, ou seja, colocado na terra como a semente, para novamente germinar e gerar Nova Vida, Nova Criação, Nova Humanidade.
Por isso o Sábado Santo da dor, da tristeza, do fracasso..., se revela também como Sábado Santo da espera e da esperança.
S. Inácio, na 3ª. Semana dos EE, nos sugere que a oração seja feita a partir da solidão de Maria. Aqui se trata de unir-nos à esperança de Maria e das mulheres, uma esperança contra toda esperança. É o muro da esperança que é preciso atravessar.
Maria “em tanta solidão, dor e fadiga” (EE. 208), mas aguardando... Trata-se de experimentar a esperança daquilo que não se vê, mas na certeza daquilo que virá.
A morte de Jesus, com todas as marcas de ser um condenado pelos homens, pelos poderes políticos e religiosos de sua época, certamente colocou Maria na maior crise possível; crer na ressurreição de Jesus foi o máximo de fé e esperança por parte dela.
O enfoque deste dia de luto está no fato de que é preciso esperar no silêncio e na calma. Às vezes queremos passar da morte à vida sem espaços de esperas.
Sabemos que a vida da Igreja, como também a nossa vida pessoal, é feita de longos sábados santos, nos quais nem a dor da Paixão nem o consolo da festa Pascal marcam significativamente nossos dias e nossas noites, mas simplesmente a dura e paciente espera, na fé mais despojada, de um Senhor, que se faz esperar tanto que parece que já não vai chegar mais.
É o Sábado Santo de um credo pascal que sabe que amanhã florescerá a messe. Submergido no sepulcro do Senhor, esperamos simplesmente.
Ao sentir nossa própria incapacidade de levar adiante a exigência do Evangelho, nos apresentamos no sepulcro do Senhor de onde pode irromper a força transformadora da manhã da Ressurreição.
O Sábado Santo é um dia sem liturgia, em silêncio, não passa nada, não sucede nada, recorda a solidão do sepulcro, a tristeza das mulheres e dos discípulos, a desilusão diante do fracasso.
No entanto o Sábado Santo é seguramente o tempo da Igreja e da liturgia que nos toca viver mais longamente em nossa vida.
Sábado Santo é tempo não só de espera, mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a germinar, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-nos a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja nazarena. O Sábado Santo é ao mesmo tempo “sepulcro e mãe”, como diziam os antigos Padres da Igreja, ao falar do batismo.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear, ainda que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a terra nova e o céu novo.
É o Sábado Santo que nos abre às surpresas de Deus, o “Amigo da vida”.
Já vislumbramos, no horizonte, as luzes da madrugada da Ressurreição.
Textos bíblicos: Jo 19,25-30 Jo 19,38-42 Mc 15,42-47
Na oração: contemplar Maria em sua “segunda Anunciação”; na “primeira Anunciação” deu-se o início da
vida de Jesus. Agora, essa Vida se revela a ela como Vida Ressuscitada.
Que Maria eduque nossa confiança; que ela nos encha de esperança.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.04.2025
“A esperança nasce do amor e funda-se no amor que brota do coração de Jesus trespassado na Cruz”
(Papa Francisco, Bula n. 3).
O mistério Pascal constitui o núcleo central da fé cristã, ou seja, a paixão-morte e ressurreição de Jesus de Nazaré e a efusão do Espírito sobre toda a Criação.
Este mistério pascal se estende também a todo o povo crucificado, ou seja, a esta grande maioria da huma-nidade que vive explorada e marginalizada, vítima dos interesses de uma minoria. Por isso, crer no Crucifica-do implica fazer descer da Cruz todos os que estão dependurados nela.
Mas a imagem da crucifixão se aplica também à situação de nossa Terra, explorada, desertificada, contami-nada, com a biodiversidade destruída e os oceanos transformados em cemitérios.
Por sua atitude de arrogância e de autossuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a Terra herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar do seu jardim e de compartilhar os seus frutos.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As consequências trágicas estão presentes por toda parte. O desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra. Estamos diante da “Terra crucificada”.
A vida cristã significa encontro e seguimento de Jesus de Nazaré, libertador e fundamento de nossa esperança. Na realidade, a esperança cristã nasce a partir da morte de um homem simples e pobre, assassi-nado numa cruz, desprotegido, abandonado, condenado injustamente como um homem perigoso, porque se rebelou contra as estruturas religiosas e contra os poderosos daquele tempo.
Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que quer que todos vivam intensamente.
A vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilida-des, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos sabem viver, porque incapazes de re-inventar a vida no seu cotidiano e alimentar uma ousada esperança. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia a dia, carregá-la de sentido.
A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de cada um, enquanto vive: sonhos, criatividade, intuição, esperança. “A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Quando fazemos o percurso em direção ao Gólgota, em comunhão com Aquele que foi fiel até o fim, não estamos fazendo um ato derrotista, nem de tristeza inútil, nem de mergulho na escuridão existencial. Estamos fazendo uma profissão de fé na força da esperança.
Esperança é uma virtude vencedora. Quando tudo parece perdido, irremediável, destruído, ela comparece
para salvar. Ela é capaz de transformar a derrota em vitória, o perigo em alívio, o desespero em alegria. A esperança é tão poderosa que consegue tirar do domínio da morte os que não veem mais razões para viver.
A esperança transforma as cinzas em fênix, a cruz em sinal de vida, as lágrimas em vitória. A esperança é a última que morre, diz o jargão popular. Ela é desprezada pelos pessimistas, ameaçada pelos gananciosos, agredida pelos incrédulos. Da esperança tudo renasce, ainda que pareça impossível recomeçar.
O pecado costuma bloquear a esperança, causar o desânimo e desiludir quem ia bem e de repente cai. A esperança é uma senhora que vem dar a mão àquele que se desiludiu consigo mesmo ou com a situação em que foi precipitar-se.
Embora tudo pareça arruinado, há uma potência interior que não permite ao ser humano desistir de si mesmo nem dos outros. Ela recobra a energia do perdão, o ânimo para não desistir, a confiança nas pessoas, a amizade que ficou ameaçada, a fidelidade a uma causa nobre.
A esperança é filha da fé e ambas se juntam para que aconteça a caridade.
Ao entrar no caminho do Calvário, mergulhamos no mar da esperança e dele saímos transformados, renovados em nosso ânimo e certos de que a morte não tem a última palavra, pois a Cruz já aponta para a Ressurreição, e aquilo que parecia não ter mais remédio encontrou vida nova.
Podem nos roubar a paz, a honra, a dignidade, a saúde, a alegria, a confiança, mas não podem nos roubar a esperança, se cremos na força criativa de nós mesmos, na capacidade de reerguer do chão, mesmo se a queda se repetiu três vezes no caminho do Gólgota.
O Jesus que seguimos até o Calvário nos levará à Páscoa. A esperança não nos será roubada, a alegria voltará a acontecer, pois não estamos sozinhos. Ele vive entre nós!
“Esperamos contra toda a esperança”, como Abraão, Maria e o próprio Jesus.
Textos bíblicos: Mc 14 e 15
Na oração: A dor, como consequência de uma opção de vida, é o subsolo do qual brota a esperança.
O sofrimento não se anula nem se nega, mas está sempre transpassado pela esperança.
A esperança que brota do sofrimento possibilita um “perene nascer do coração”.
Na Paixão, tornamo-nos solidários com a dor de um Homem que espera, apesar de tudo, e que se abre à dor de todos, encontrando na solidariedade e na dor dos outros, razões para relativizar sua própria dor.
Jesus foi realmente o homem solidário com a dor da humanidade para contagiar a todos com sua esperança de vida plena e definitiva. Jesus assume a dor de todos e des-vela o ser humano à luz da esperança.
Esperança de vida: a Cruz – que se completa com a mensagem da ressurreição, com a qual forma um único acontecimento – proclama que a Vida não morre; que, inclusive naquelas circunstâncias nas quais parece que tudo é fracasso, a Vida abre caminho; nenhuma morte é o final.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.04.2025
“Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13,5)
Jesus, durante sua vida pública, revelou uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só participou de muitas refeições, mas instituiu a grande Mesa da festa, da intimidade, da memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.
Ali, Ele “despojou-se do manto” (sinal de dignidade de “senhor”), pegou o avental (toalha, “ferramenta” do servo); “derramou água numa bacia...” (água derramada com extrema delicadeza, com atenção e amor); “...e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha” (Jesus inclinou-se aos pés dos seus discípulos, até o chão, com reverência, cuidado, acolhida, sem fazer distinção de ninguém; lavou os pés de todos igualmente).
Jesus está no meio das pessoas como Aquele que serve. Ele é o Senhor que assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas para seus seguidores. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio.
No “lava-pés”, Jesus deixa transparecer um amor que escandaliza, porque rompe todos os cânones estabelecidos. Um amor “subversivo”, porque subverte os critérios sociais e religiosos de seu tempo, desloca advérbios, adjetivos, nomes: acima-abaixo, dentro-fora, mais-menos, primeiros-últimos, poder-serviço, sábios-néscios, cegos-videntes, justos-pecadores, sãos-enfermos... Com sua atitude, Jesus subverte as crenças religiosas de seu tempo (centradas na lei) para reivindicar os atributos próprios de Deus em quem Ele acreditava; Ele deixa transparecer o rosto amoroso e cuidadoso do Pai.
Um amor inclusivo: não discrimina a ninguém, constitui uma comunidade de iguais, unindo em torno a si homens e mulheres, crianças e idosos... Um amor universal e preferencial: todas as pessoas cabem em seu coração, mas de um modo especial as pessoas excluídas por qualquer razão: os pobres, os enfermos, os marginalizados, os considerados pecadores, judeus e pagãos...
Um amor que se faz estremecimento das entranhas e que gera uma atitude de compaixão operativa. Um amor que, como a água pura, se “derrama” e se expande no cuidado simples, despojado, acolhedor...
Para revelar seu extremo amor, Jesus toma em suas mãos o elemento da natureza mais universal: a água. Ele “derrama água numa bacia”: gesto simples, mas carregado de significados; é símbolo de vida derramada, doada, entregue. A água dá vida, regenera, purifica, é disponível a todos; não vive para si mesma, senão para quantos dela necessitam; adapta-se a todos os tempos, recipientes e lugares. Sabe estar em jarras de barro e em vasilhas de ouro. Sabe manchar-se para que os outros estejam limpos. Não faz distinção das criaturas: a todas molha, lava, põe frescor e beleza.
A água é canção, alegria, paisagem, espelho de sonhos e poesia. Ela transforma, regenera e põe vida em toda a Criação. Ela abre os povos à comunicação, à cultura e ao encontro. Ela está sempre disponível e aberta a todos os campos, terra, plantas, animais e pessoas que dela precisam.
Na cultura hebraica, a hospitalidade exige que se ofereça água fresca ao visitante, para que lavem seus pés, a fim de assegurar a paz de seu descanso.
A Campanha da Fraternidade deste ano vem nos lembrar que no princípio eram as águas; águas que criam e recriam o universo. Elas tomam as mais diferentes formas. Na natureza, contornam todos os obstáculos, esculpem as pedras dos rios e o fundo dos mares; elas se manifestam tranquilas nos lagos, rebeldes nas cachoeiras, abençoadas nas chuvas, sempre em movimento. “A água nunca descobrirá o que ela é. Mas, precisamente por ser água, continuará a brotar, a cantar e a lavar a terra e a buscar o mar”.
Apesar de tomarem as mais variadas formas, nem perdem sua identidade, são sempre flexíveis, maleáveis, por vezes teimosas a percorrerem seus caminhos ao encontro do mar.
Águas, dádivas divinas. Águas que matam nossa sede e nos curam; águas que nos purificam e refrescam; águas que nos descansam e nos reanimam. Águas que envolvem e acolhem a todos sem distinção; águas sem preconceitos; águas que não se recusam em umedecer territórios ressequidos, nem se espalhar em lugares sujos.
Deus cria a partir das águas. Só podemos ser cocriadores a partir das águas. Quem não cuida, não respeita e não tem uma relação de veneração e de encantamento para com as águas, não pode ser criativo.
Urge recomeçar, recriar a partir da água, antes que seja tarde demais. No princípio era a água, mas ela também poderá chegar ao fim. O clamor das águas contaminadas de nosso tempo chega aos céus. Como profetizas, as águas consolam os cansados, saciam os sedentos, lavam os suados pelo trabalho, revigoram as forças dos desanimados, mas também as águas clamam por respeito e por justiça. Os rios fervem o sangue de indignação contra cidades desgovernadas, empresas e pessoas poluidoras que tratam o “sangue da terra” como se fosse receptor de resíduos tóxicos. Ai de quem mata as nascentes, asfixia os mananciais e envenena os rios!
A trajetória do Povo de Deus foi marcada pela experiência com a água. Ela está relacionada com os principais eventos fundantes do povo da Bíblia: na criação, no dilúvio, na saída do Egito, na entrada da Terra Prometida, etc... Qualquer projeto bíblico só se sustenta perto de fontes de água, de rios ou cisternas.
Segundo o relato bíblico de Gen. 2,1-10.15, a terra é vocacionada para ser um jardim de Deus e o ser humano, um jardineiro. As águas foram feitas para irrigar o jardim da vida.
Para os povos de regiões áridas, a primeira obra de Deus foi viabilizar a chuva sobre a terra e irrigar uma região quase desértica.
A Bíblia testemunha um mistério em torno dos poços de água. “Todo deserto contém um poço escondido” (Saint-Exupèry). Em uma região árida, cada fonte, cada olho d´água, cada poço é quase um milagre. Toda fonte é sinal forte da benção divina, um presente de seu amor.
As fontes fazem parte da promessa de Deus para o seu povo (Dt. 8,7-8).
E a Água se fez “carne” e habitou em todas as criaturas do universo. Não somos apenas filhos e filhas da água. Somos mais: somos água que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria... Estamos vinculados à Criação toda através da água. Devemos nos espelhar na gestualidade de Jesus que derrama água para lavar os pés de seus discípulos.
O desafio de viver uma “ecologia integral” convoca todas as tradições humanistas e religiosas a salvarem o planeta Terra. Se a água nos trouxe à vida, o dia que ela acaba não restará nenhum ser vivente. É através da água que é possível estabelecer uma profunda unidade entre todos os seres vivos e não vivos.
Pertencemos todos à água e ela nos pertence; ela é o sangue que circula pelas veias da Criação inteira, possibilitando e recriando a vida; é ela que alimenta a interdependência entre os seres. Assim como os minerais combinam e intercambiam moléculas e cores, a água é a mediação através da qual os seres vivos compartilham suas vidas.
“Tal qual poça d´água deixemos o céu refletir em nós” (D. Helder)
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: É preciso compreender que o gesto do “lava-pés” constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade d’aqueles que seguem Jesus e exercem algum serviço em sua comunidade. Gesto que é revelação e ensinamento, amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...
Na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”: vestir o coração com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço gratuito...
Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.04.2025
“Ao cair da tarde, Jesus se pôs à mesa com os Doze”
Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” da Última Ceia, uma refeição tão especial e carregada de sentido. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como marca dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os seguidores de Jesus se constituem como verdadeira comunidade. Ao recordar a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
Jesus quis cear com os seus amigos mais próximos e, por isso, precisa encontrar uma sala na qual houvesse espaço para estarem juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que acontecem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes. Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino. E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
Jesus fez questão de se confraternizar com o círculo dos amigos, do qual Judas fazia parte.
Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que se serviu comigo do prato é que vai me entregar". Esta maneira de anunciar a traição acentua o contraste. Para os judeus a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus sugere assim que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição.
Na descrição da paixão de Jesus do evangelho de Mateus acentua-se fortemente o fracasso dos discípulos. Apesar da convivência de três anos, nenhum deles ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus conta isto, não para criticar ou condenar, nem para provocar desânimo nos leitores, mas para ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos.
Preparar a mesa e fazer a refeição implica todo um ritual. Comer é mais do que ingerir alimentos, é entrar em comunhão com as energias que sustentam o universo e, por meio dos alimentos, garantem a vida.
Por isso, a mesa, a ceia e o banquete são cercados por uma rica simbologia. O próprio Reino de Deus, a utopia de Jesus, é apresentado como uma ceia ou um banquete na casa do Pai
É junto à mesa que se dá o processo de humanização e comunhão; a partir desse ato sagrado, podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).
É assim a comunidade dos cristãos, a Igreja: juntos, “conspirando”, mãos dadas, comendo o pão, bebendo o vinho e sentindo uma saudade/esperança sem fim...
À luz do tema da CF (Fraternidade e Ecologia integral) podemos dizer que no pão e no vinho chegam até nós os quatro elementos da mãe natureza: a terra, o sol, a água e o ar. Através do pão e do vinho entramos em comunhão com essa natureza que nos envolve e nos protege maternalmente. Comungamos com ela e dessa comunhão surge nossa humanidade, na qual se encarna o Filho de Deus.
É o Papa Francisco que, em sua importante encíclica (Laudato sí), faz alusão a esta dimensão cósmica da Eucaristia. Porque, no pão e no vinho se concentra toda a essência da Criação, a exuberante riqueza de seus recursos, a fecundidade inesgotável da terra, a beleza deslumbrante de suas fontes, de seus mares e rios, de seus bosques, de suas montanhas...
Assim expressa o para no n. 236 da encíclica: “A Criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. No auge do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz a partir de cima, mas a partir de dentro, para podermos encontrá-lo-Lo em nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, e é o centro vital do universo, o centro transbordante de amor e de vida inesgotável. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a Criação. No Pão Eucarístico, a Criação está orientada para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”.
O texto é, sem dúvida, de uma grande densidade teológica. Os dons eucarísticos, o pão e o vinho, por sua condição material e terrena e por sua vinculação ao trabalho do ser humano, são parte da Criação, são algo nosso, um “pedaço de matéria”; pertencem à nossa condição mais própria e íntima. Tudo isto nos faz tomar consciência de que, no insondável mistério eucarístico, os dons apresentados são uma representação do cosmos. Todo o universo cósmico é assumido e representado na Eucaristia. Deste modo a Eucaristia se torna o centro do cosmo, o centro vital do universo; ela é celebrada sobre o altar do mundo.
O Universo inteiro é um imenso altar cósmico sobre o qual celebra-se, diariamente, a liturgia da vida; ao mesmo tempo, ele é o lugar no qual podemos contemplar e acolher a presença do Criador, a harmonia dos seres, a comunhão das criaturas. Sobre o altar do mundo se entrelaçam o céu e a terra, de modo que toda a Criação é iluminada pela Eucaristia.
Todas as criaturas celebram a grande festa, ao redor da Mesa cósmica (Última Ceia – Ceia universal).
A vivência da Última Ceia nos proporciona uma fecunda experiência cósmico-ecológica. Sentimo-nos conduzidos pela força do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Ao mesmo tempo ela nos convida a nos posicionarmos de maneira diferente no Universo e levarmos a sério a responsabilidade que temos sobre a Criação.
E a “eucaristia cósmica” se prolonga nas refeições cotidianas. A comida-bebida é expressão de dependên-cia, de nossa condição de criaturas. Por esta ação, manifestamos e experimentamos que necessitamos sair de nós mesmos para subsistir. Nela nos encontramos com algo que nos vem de fora e que necessitamos vitalmente, já que não podemos tirá-la de nosso interior.
Somos solidários do universo porque dependemos dele. É nossa dimensão cósmica mais palpável. Vivemos graças aos frutos da terra. Este sentido de religião já nos insinua o religioso.
O fato de tomar juntos uma refeição é sinal de comunicação inter-humana, pois comemos em companhia e não sozinhos. Na sua raiz, a refeição é uma ação que implica comunidade, comunhão, comunicação. Se falta esta dimensão, a refeição se torna uma simples ingestão de alimento; não é um ato humano integral: comer e beber é expressão de nossa unidade de origem e de nossa solidariedade na condição humana; compartilhamos uma mesma origem e um mesmo destino, um mesmo enraizamento na terra, no cosmos.
Texto bíblico: Mt 26,14-25
Na oração: Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
- Re-visitar o sentido e o lugar da mesa-refeição no seu ambiente familiar: é lugar facilitador de partilha e convivência?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.04.2025
“Um de vós me entregará... Era noite”
A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade profunda.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever de todos em lavar os pés uns dos outros. Judas já tinha tomado a trágica decisão e, depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
De fato, na contemplação da Última Ceia, um personagem vem sempre à nossa lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição a Jesus, mas, no fundo, ele nos causa repulsa porque é projeção das nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.
Mas... o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro? Por que traímos o amor de Deus por todos nós?
Judas ficou decepcionado com o chamado de Jesus. Tinha outros interesses e não conseguiu entrar em sintonia com o coração e o projeto do Mestre; ele destoa porque não captou que em torno a Jesus tudo é gratidão e gratuidade.
Judas aparece nos três relatos evangélicos destes dias (segunda, terça e quarta-feira), não como protago-nista, mas como alguém deslocado, frio e insensível diante do drama que Jesus está vivendo; aliás, é ele mesmo que alimenta mais ainda o drama da dor e da perseguição imposta a Jesus.
Os evangelistas não deram muita importância à figura de Judas; na realidade, sentiam-se incomodados com ele e não aceitavam suas posturas e suas atitudes. No entanto, dada a importância do tema da traição, é Jesus quem intervém diretamente e des-vela as questões espinhosas que este discípulo carregava em seu coração. Há coisas que estão muito além do dinheiro: a delicadeza com as pessoas, os gestos de ternura e compaixão, o cuidado com os mais necessitados, o espírito gratuito de serviço...
A vida da comunidade cristã deve estar fundamentada nas atitudes oblativas e não nas conveniências do próprio “amor, querer e interesse”.
Na Última Ceia, que Jesus mesmo preparara com tanto cuidado, Judas só está fisicamente presente no ritual, mas seu coração está ausente, não consegue entrar no clima da refeição. Ele tem outras coisas para fazer e desaparece na noite, sem inteirar-se do sentido deste momento. Na verdade, ele está “vendido” a outros poderes; recebe promessas “de fora”, mas não se sente bem dentro da comunidade. Chegar à traição é só um passo.
O tema da CF deste ano – “Fraternidade e Ecologia integral” – vem denunciar a grande “traição” vivida pela humanidade inteira; recebemos do Criador a nobre missão de “cuidar e guardar” a Casa Comum; no entanto, traímos a confiança que Deus depositou em cada um de nós; traímos a Criação inteira porque nossa presença se revelou destruidora da grande rede de vida; traímos as pessoas porque a insensibilidade ecológica é expressão de nossa insensibilidade diante do outro, sobretudo o outro violentado e excluído.
Por trás da palavra “traição” se esconde o drama da existência humana. Esse drama mostra-se trágico, pois revela uma aparente situação insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana.
A experiência de traição é de desvio de rota, de frustração da própria vocação, experiência que nos desu-maniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados, solitários...
Nossa comunhão sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi substituída por um profundo desespero. De fato, temos lavrado nosso próprio “inferno”.
Hoje constatamos as chagas ecológicas estampadas por toda parte e os próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão: buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...
O drama do ser humano é perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial. A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcen-dência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...
Há muitas causas que nos fizeram chegar à atual crise ecológica. Mas é preciso chegar à última: a traição do ser humano que significa ruptura permanente da re-ligação básica que ele introduziu, alimentou e perpetuou com o conjunto do universo e com seu Criador.
Com sua traição, o ser humano rompe com a solidariedade natural entre todos os seres, contradiz o desígnio do Criador que o quis como co-criador e que, através de sua inteligência completasse a criação imperfeita.
A salvação reside na re-ligação com todas as coisas. Não precisa necessariamente ser mais religioso, mas mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. Ele precisa voltar à Terra da qual se exilou e sentir-se seu guardião e cuidador. Então será refeito o contrato natural. E, ao se abrir ao Criador, saciará sua fome e sede infinita e colherá como fruto a paz.
É preciso aprender da Mesa deixada por Jesus: ela pode ser lugar da traição ou lugar de novas relações.
Jesus, o Homem do Cuidado e companheiro de mesa, nos convida a ser mesa de acolhida e de partilha, se quisermos ser seus amigos e amigas.
Ecologicamente falando, o relato da última Ceia nos indica várias lições:
Em primeiro lugar, ela expressa uma comunicação com a Terra da qual o pão e o vinho procedem. Comer e beber é entrar em comunhão com as energias e forças cósmicas; é receber a energia que renova a vida, regenera cada pessoa, que experimenta uma sensação de plenitude não só fisiológica, mas existencial, rela-cional, espiritual... A Terra e o Cosmos são, ao mesmo tempo, símbolos máximos de Vida, epifanias de uma Energia renovadora através do campo, de sua fertilidade, de seus frutos; através do sol, da lua com seus ciclos e estações, do mar... estamos conectados com o Transcendente e, portanto, com o religioso, in-separável do antropológico e do ecológico. Entramos em comunhão com toda a realidade cósmica, primeiro através da respiração, do banho nas águas, na recepção dos raios solares e, finalmente, no ato de comer.
Através desta união entre o cósmico, o humano e o divino, nasce a nova Criação; ela nos possibilita viver a ecologia integral redentora, ou seja, através do alimento há uma reconciliação entre o homem-mulher, a natureza e Deus. Há união, harmonia entre criação cósmico-humana e Criação. Há uma reconciliação pacificadora que é comunhão entre humanidade, cosmos e Deus.
Texto bíblico: Jo 13,21-33.36-38
Na oração: dê nomes às diferentes “traições” que podem se manifestar no cotidiano da vida: na relação com o Criador, com os outros, com a natureza...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.04.2025
Estamos entrando na Semana Santa, a semana da Páscoa de Jesus, da sua passagem deste mundo para o Pai (Jo 13,1). A liturgia de hoje coloca diante de nós o início do capítulo 12 do evangelho de João, que faz a ligação entre o Livro dos Sinais (cc 1-11) e o Livro da Glorificação (cc.13-21).
Somos convidados a entrar na casa em Betânia: casa de encontro, da comunidade de amor e coração de humanidade:
- Com Jesus Mestre, para nos tornar mais humanos e próximos;
- Com Marta, para professar a fé e a servir na diaconia;
- Com Lázaro, para passar da morte à vida e caminhar na liberdade do Espírito;
- Com Maria, para quebrar os frascos e derramar o perfume da escuta e do amor.
Assim é a vida: amizade, gratidão, refeição, perfume que invade tudo...
Betânia é “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam nossas pobrezas pessoais e comunitárias, nossa pequenez abençoada e nossa fragilidade iluminada; mas, também é lugar onde se fazem visíveis as pobrezas de nosso mundo, da humanidade e da Criação inteira, que afetam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos confrontar em nosso seguimento de Jesus.
A casa deve ser escola de encontro e fraternidade. A comunicação (comum união) se celebra entre suas paredes que, em seguida, se expande para além de seus limites, despertando uma sensibilidade solidária.
A casa prepara para a vida, pois é ali que os fundamentos de uma personalidade vão se solidificando.
A casa é mais do que uma realidade física, feita de quatro paredes, portas, janelas e telhados.
Casa é uma experiência existencial primitiva, ligada ao que há de mais precioso na vida humana, que é a relação afetiva entre aqueles que a habitam e com aqueles que nela são acolhidos.
A casa nos ajuda a fincar raízes neste mundo e em nós mesmos; ela nos fixa no solo e nos fornece orientação; ela é o lugar seguro que nos possibilita repouso e revigoramento afetivo, bem-estar e proteção...; ela nos oferece um espaço estabilizador e nutridor, suscitando vigor e saúde integral.
Negar casa a alguém é negar-lhe o útero que protege e acolhe, é tirar-lhe a segurança necessária para viver, é fazê-lo um errante sem pátria e sem rumo. Perder a casa é se perder-se a si mesmo.
A casa é também o lugar da nova comunidade inaugurada por Jesus; é a casa do Pai (Jo 14,2).
Para Jesus, ser “humano” é ser casa aberta e acolhedora. Tal atitude pede “mais portas e janelas e menos espelhos”. No espelho nós nos vemos; e o que vemos não é o que somos, mas o que aparentamos ser. Desta percepção não saímos. O horizonte perceptivo é mínimo. O espelho é incapaz de revelar a verdade de nosso ser e de ampliar nosso mundo afetivo e social.
As portas e janelas, pelo contrário, ampliam nosso horizonte. Através delas renova-se o ar denso e irrespirá-vel do interior da casa que geramos fechados em nós mesmos. As portas e janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a sociedade, sem a qual não existe relação humana. Elas servem para apontar aos outros que eles fazem parte de nossa vida e que, abertas, indicam que podem entrar em nossas vidas.
Como seguidores(as) de Jesus, habitando em casas construídas sobre a rocha do Evangelho, deveríamos nos preocupar mais com as portas e janelas e menos com os ornamentos dos espaços interiores. É preciso descobrir outros rostos e de maneira especial, rostos feridos, machucados e necessitados de abraço.
É da nossa condição humana buscar um espaço, um lugar hospitaleiro e acolhedor, o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados.
São muitos os lugares por onde transitamos, mas o mais importante deles é a nossa casa.
“É preciso que você saiba acolher o outro. Existe uma crise de moradia muito mais grave que
a falta de casas: é a escassez de pessoas interiormente disponíveis para seus irmãos.”
O ícone da “casa em Betânia” revela-se instigante diante do processo destrutivo da “Casa Comum”;
“Somos terra e esta é nossa casa, nossa irmã e nossa mãe”. Assim começa o Papa Francisco sua encíclica “Laudato si’”. No fundo desta encíclica, pulsa esta intenção: aspiramos nos salvar juntos, porque tudo nos afeta a todos no único mundo que temos.
A Terra, nossa casa ameaçada por processos de aquecimento e ruptura dos equilíbrios da vida em comum, se converte cada vez mais em um imenso depósito de lixo.
Frente a uma realidade que apresenta múltiplos aspectos, todos intimamente relacionados, o Papa Francisco propõe uma grande virada no discurso ecológico, passando da ecologia ambienta à “ecologia integral”.
Somos, pois, “Casa Comum”, conectados numa vasta rede de relações no qual vivem, convivem e interagem, muitas outras pessoas e criaturas, muitas delas sobrevivendo em condições de grande penúria, escassez e violência. Cuidar da casa comum supõe, portanto, cuidar da maneira como somos “casa”, como influímos nas vidas de outras pessoas, como contribuímos para que se sintam acolhidas e acompanhadas em seu meio. É descobrir aí um desafio que vai muito mais além do mero cuidado de algo externo: cuidamos de nós mesmos, de nossa humanidade e da rede de relações que nos mantém vivos.
Nosso mundo está interrelacionado, fazemos parte da única terra, vivemos dentro de ecossistemas, atmosfera, vegetação, animais e seres humanos; fazemos parte dessa vasta rede vital, mas não podemos destrui-la sem afetar a todos; qualquer mudança repercute em todo o cosmos.
Um passo a mais damos quando reconhecemos a Natureza, nosso planeta, como “casa comum”. Sentimo-nos implicados com ela ao reconhecê-la como nosso habitat necessário, habitat por sua vez compartilhado com outros seres humanos; podemos assim nos posicionar de maneira criativa, reconhecendo a necessidade de não a deteriorar ainda mais e de conservá-la, e inclusive melhorá-la, para as gerações futuras.
Na unção em Betânia, Maria pode ser considerada como um ícone da nova sensibilidade que o evangelho
nos oferece. Ela está dotada de uma sensibilidade muito superior à dos discípulos, tanto para perceber o que acontece como para expressar seus sentimentos com admirável fineza e liberdade.
Os dirigentes judeus andavam buscando uma ocasião para matar Jesus. Maria, certamente havia escutado os rumores que chegavam da vizinha Jerusalém e que circulavam em voz baixa entre as pessoas do povo. Ela sintonizou com este momento dramático. Sua criatividade feminina encontrou no perfume um símbolo para expressar com grande delicadeza o que esse momento transbordava seu coração. Maria investiu num gesto gratuito e desmedido, expressão de um amor exagerado.
O excesso de seu gesto sintoniza perfeitamente com o amor sem medida de Jesus, mas ultrapassa a limitada capacidade de compreensão dos presentes à mesa, sobretudo Judas Iscariotes.
Os perfumes e os aromas estiveram muito presentes na vida de Jesus, em seus momentos de dor e prazer. O perfume revela e oculta ao mesmo tempo, aviva o desejo, a abertura à surpresa de uma presença. Jesus os recebeu agradecido, e sua própria vida tomou o símbolo do frasco, precioso e caro, que se quebra para poder derramar-se em favor de muitos.
Quando a Vida nos unge, estamos potencialmente equipados para anunciar a boa nova, a luz, a cura, o cuidado... Ações que nos plenificam.
Texto bíblico: Jo 12,1-11
Na oração: A casa “imprime caráter” ou nós imprimimos caráter à casa? Tudo vai depender como se encontra a "casa interior”, o próprio coração.
Nesse sentido a casa torna-se Templo do Espírito pois ela nos ajuda a fazer contato com nossas “moradas interiores”: lugar de intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimento e construção de decisões.
- É do “interior habitado por uma Presença” que brota o impulso para a saída de si e viver a “cultura do encontro”.
- Seja “casa cristificada” onde a mão estendida se revela como gesto contínuo, sinal visível de um coração compassivo e acolhedor; quebre o “frasco” do perfume mais original, presente em seu interior, para perfumar os ambientes fétidos de mentiras, ódio, intolerância, preconceito...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.04.2025
“Jesus caminhava à frente dos discípulos, subindo para Jerusalém” (Lc 19,28)
Depois de uma longa caminhada Quaresmal, chegamos à Semana Santa, onde celebramos os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, ou seja, os acontecimentos centrais de nossa fé cristã. O toque principal é dado pela Páscoa: “passagem” da morte à Vida.
Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos da Galileia, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava recriar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...
“Estavam subindo a Jerusalém”. A paisagem familiar da Galileia foi ficando para trás e a fadiga da subida pesava agora sobre seus corpos cansados; sabiam o que lhes esperava, sobretudo pela inquietação que enchia seus corações de obscuros presságios. O Mestre, eterno Peregrino, alimentava a esperança de levar vida a uma cidade carregada de morte; por isso, caminhava com passos rápidos, seguido dos seus discípulos.
Jesus, entra nesta cidade aclamado pelo povo simples. Há muitas formas de entrar na vida, nas situações, nos problemas, nos povos..., por razões e interesses muito diferentes e, portanto, com atitudes diferentes. Muitas são “entradas” de poder, seja de ordem política, militar, desportivas, eclesiástica... Jesus entrou em Jerusalém de maneira provocativa e ousada. Sua “entrada em Jerusalém” pode também ser uma ocasião privilegiada para questionar nossa presença nos grandes centros urbanos.
Assim, o percurso quaresmal desemboca na cidade e nos convida a examinar nossa presença cristã nas cidades: como torná-las mais humanas, acolhedoras e possibilitadoras da vida.
A Campanha da Fraternidade deste ano pede de todos nós, seguidores(as) de Jesus, uma atitude ecológica, também nos grandes centros urbanos, através de uma “incidência política”; cada vez mais nossas cidades se revelam irrespiráveis, contaminadas, com diferentes expressões de muros que alimentam conflitos e divisões; é preciso criar “oásis de humanidade”, onde todos possam se sentir em casa.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade..., desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos. “Entrar Jerusalém” com Jesus é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o(a) seguidor(a) de Jesus tem em quem se inspirar.
As pessoas e os povos de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de seu interior, sonhos de rara beleza, uma esperança ousada, um sentimento de profunda comunhão com tudo e com todos (ecologia integral). São desejos de construção de uma nova Jerusalém, a cidade humanizada, ou seja, espaço de acolhida, de convivência, de proteção e cuidado da vida, de fraternidade... Era certamente nessa direção que Jesus apontava, ao se dirigir a Jerusalém como a cidade das esperanças e possibilidades.
Este é um dos grandes desafios nas nossas grandes cidades. Romper com o individualismo e as estruturas petrificadas que marcam as relações entre os homens e as mulheres, para criar um marco novo, humanizador e aberto a Deus Pai, através de pequenas comunidades. Comunidades daqueles que confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas – as mesmas esperanças, os mesmos sonhos, a mesma utopia da “Cidade Nova” do Reino.
Esta Cidade Nova deve estar circundada por “Novos Céus e Nova Terra”, assentada no centro de uma Nova Criação; portanto, em equilíbrio e beleza ecológica visível, integrada neste horizonte mais amplo da Nova Criação, que é manifestação da chegada de toda a realidade à sua plenitude. Todas as expressões de vida devem estar interligadas e interdependentes, constituindo uma Ecologia Integral, perpassada pelo mesmo Sopro do Espírito.
O mundo urbano é, certamente, área de missão da Igreja e dos cristãos. Sua principal preocupação é a defesa integral da vida e de seu sentido último, o mundo dos valores éticos que iluminam o homem e a mulher na sua ação no mundo.
No meio das cidades encontramos pessoas “especiais” que se comprometem alegremente com a humanização dos espaços, e se convertem assim em fator essencial de esperança para um futuro novo; são pessoas que “gastam” suas vidas, sua acolhida e seus cuidados em favor das vítimas da violência e da destruição.
A cidade é uma realidade humana que pode e deve ser iluminada pelo Evangelho, sustentada pela graça, animada pela esperança da vinda do Reino. É necessário aprender a ler a cidade com os olhos caridosos, pacientes, misericordiosos, amigos, fecundos, cordiais...
Para o(a) seguidor(a) de Jesus, a cidade é também o espaço para a busca e o encontro de Deus. Podemos falar de um “típico modo de proceder cristão” em sua referência ao espaço urbano.
É Deus que constrói a cidade perene, a cidade sem muralhas, a cidade da plenitude e da amizade, a cidade da fraternidade na qual todos se reconheçam como irmãos e irmãs sob um único Nome e sob um único Céu. Deus é o grande arquiteto; é Ele quem constrói, para a humanidade, a imensa cidade na qual todos se reconhecem fraternos, próximos, ternos... É nessa direção que somos chamados a sermos colaboradores para “pôr o coração de Deus no coração da grande cidade”, e renová-la a partir de dentro.
A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica, portanto, romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência. Somos chamados a uma pertença pessoal cada vez mais ampla, até sentir-nos parte da “Jerusalém” que sonhamos. Precisamos de fronteiras, sim, mas que sejam fronteiras abertas ao diálogo, flexíveis, fluidas, acolhedoras do diferente...
Nossa vocação é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas sociais, políticas e econômicas que tornem possível o diálogo, a solidariedade e o encontro entre todos os seres humanos e aponte para uma nova cidade, fraterna e justa.
Este pode ser nosso “Domingo de Ramos”: desejar, sonhar, alimentar esperanças, ver a Jesus nos pobres, nos excluídos, nos sofredores, e forrar seu caminho com nossos mantos, alegrar-nos com Ele, bendizê-lo e sermos benditos por Ele, enquanto, cuidando dos pobres e da Criação, neles cuidamos de nosso Rei. Podemos, então, proclamar em alta voz: “Hosana”, “hosana nos céus e nas criaturas”, “hosana em todas as pessoas”, “hosana na Criação inteira” ...
Texto bíblico: Lc 19,28-40
Na oração: O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, transformadora, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.
A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde, da ecologia..., onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...
- Traga à “memória” o que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?...
- Procure descobrir “sinais do Reino de Deus” no meio do ritmo frenético de sua cidade.
- Traga à mente nomes de pessoas corajosas e criativas que contagiam e fazem crescer a esperança na sua cidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.04.2025
“Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” (Jo 8,5)
Há em todos nós uma dificuldade básica de nos tornar conscientes e responsáveis pelos nossos erros. Em muitas ocasiões atua em nós um mecanismo de defesa, em forma de negação e de cegueira, que pretende evitar a dor e a ferida interior da culpa, preservando nossa autoimagem e nosso narcisismo. Introjetamos em nós a falsa ideia de perfeição; há uma cobrança social de que não podemos fracassar; temos resistências em assumir nossa condição humana (húmus) pobre e frágil; pesa sobre nossos ombros a força da falsa imagem de que somos semideuses. Com isso, alimentamos escribas e fariseus em nosso interior, centrados na lei e com as mãos cheias de pedras.
Efetivamente, no relato evangélico deste domingo, Jesus desmascara aqueles que, com a lei na mão, assumem a cátedra de juízes e projetam sobre os outros as próprias mazelas: “quem dentre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”. A “primeira pedra” é a que provoca todas as violências, alimenta ódios, intolerâncias, rompe relações...; a primeira pedra é ponto de partida de toda desumanização.
É verdade que, literalmente, aquela “primeira pedra” é algo incômodo para quem deseja lançá-la. No entanto, quando se trata de palavras, maledicências, fofocas, calúnias, murmurações, suspeitas, “fake news”, julgamentos ..., não pensamos nisso. São diferentes expressões da “primeira pedra”. São piores as pedras da língua que as pedras que atiramos com a mão. Todas as desgraças sociais e religiosas dependem da primeira pedra.
Depois da primeira pedra produz-se uma chuva de meteoros. E todos correm para socorrer, defender e justificar, não a pobre vítima, mas àquele que lança as pedras, integrando suas violentas pedradas às daquele que iniciou a lapidação. Tudo por culpa da primeira pedra, lançada com frequência e sem medir as consequências. Na verdade, a primeira pedra, a primeira palavra, a primeira suspeita..., lançadas com rapidez, são as mais contundentes e desencadeiam um processo destruidor.
Os olhos, a língua e as mãos são expressões do coração; um coração petrificado é gerador de pedras mortais. Normalmente, a petrificação interior é sempre recheada de devocionismos externos, de práticas religiosas alienadas, de ritualismos repetitivos, de moralismos estéreis... O legalismo intransigente e inflexível desemboca no orgulho e na vaidade, levando a pessoa a subir no seu tribunal, fazendo-se juíza dos outros.
Quando alguém não reconhece a própria culpa, porque o próprio perfeccionismo o impede, facilmente ele a projeta sobre os outros, num claro mecanismo de defesa. E descarrega sobre outros a própria insatisfação, frustração e os próprios sentimentos de culpabilidade. Assim, ele elege alguns “bodes expiatórios” sobre os quais se projeta o próprio mal interno e, desse modo, procura aliviar o íntimo mal-estar e o peso moral. Quem tem o coração petrificado não tem bênçãos a oferecer, mas pedras a serem atiradas.
Um coração petrificado se expressa numa atitude de intolerância e insensibilidade frente aos outros.
Tal atitude a encontramos claramente na cena da mulher surpreendida em adultério, relatada por João. Aqui temos a “pedra na mão”, magnífico símbolo da culpabilidade, disposta a ser lançada sobre alguém em quem se projeta a própria maldade não reconhecida.
Numa postura arrogante, os escribas e fariseus tomam para si o poder de julgar os outros, de dar aos outros o que eles pensam que merecem (recompensa ou castigo, a vida ou a morte).
O “arrogante” é um ser petrificado: a lei é a sua; a palavra é a sua; a verdade é a sua; o momento é o seu.
É por isso que Jesus apela ao grupo dos agressores a que dirijam o olhar sobre seu próprio interior e, no reconhecimento de seu próprio pecado, a pedra possa cair de suas mãos.
A mulher ficou livre. Os agressores, de outra maneira, também livres do engano de negar sua culpa para projetá-la maldosamente sobre aquela pobre mulher.
Silêncio e palavra configuram as duas faces do relato do evangelho deste domingo.
Jesus escreve sobre a terra; isso tem gerado especulações. Segundo France Quéré, com sua escrita misteriosa, Jesus traça as grandes linhas do “código da misericórdia”, que não pode se encerrar nos artigos de uma norma jurídica, nem pode ser esculpida sobre a pedra.
Não se escreve a misericórdia sobre matéria dura, e tampouco ela pode ser fixada sobre o papel. Traça-se a misericórdia sobre a superfície delicada de um coração de carne, simbolizada na matéria fofa da terra. A vida surge da argila, porque a argila é maleável. Deus não tirou o ser humano da pedra.
Só a terra é fértil; a pedra é estéril. E as pedras lançadas nunca produzirão frutos. A misericórdia, sim, é fecunda: cria, recria, abre um novo horizonte de vida...
“Ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos”. Também aqueles que queriam lapidar a mulher receberam a luz da misericórdia, visível no rosto de Jesus. O Mestre tirou a máscara que cobria o rosto de cada um deles; tirou-os do anonimato e da maldosa cumplicidade do grupo, do corporativismo, para pôr cada um frente à sua própria consciência. Obriga-os a se olharem por dentro e não olhar mais a adúltera. Habituados a notar os defeitos dos outros e a denunciá-los com ira, tinham perdido o costume de notar e preocupar-se com as próprias más ações. Habilíssimos para descobrir as infrações dos outros, estavam desacostumados a se sentirem pecadores, tendo sujas as mãos e a boca. Convencidos de ter autorização para desempenhar o papel de juízes, já não perguntam se, por um acaso, também eles não pertenciam à categoria dos malfeitores, dos iníquos. Forçando os outros a dar conta de suas ações, acreditavam finalmente dispensados de se olharem no espelho.
Desembarcam como “justos” e agora regressam às suas casas com a patente de “pecadores”. São colocados dentro da comunhão dos pecadores, ponto de partida obrigatório para chegar a uma profunda conversão. No fundo, Jesus obrigou os juízes a se julgarem a si mesmos. Deste modo, o processo que devia acabar com um escândalo, se interioriza. Desenrola-se a portas fechadas; cada um “rumina” em sua casa. Nem sequer é preciso luz porque o rubor do rosto deles podia ser percebido até na obscuridade.
Como diz S. Agostinho, no final se encontram a sós “miséria e misericórdia”. Provavelmente a mulher do relato não precisasse sequer de escutar aquelas palavras de Jesus: “também eu não te condeno”. O que ela precisava era levantar os olhos. No momento em que faz isso, a adúltera se encontra com alguém que a olha de maneira diferente dos outros. Nunca tinha visto nenhum homem olhá-la dessa forma.
Nada tem a temer diante daquele homem que traça sinais misteriosos sobre a terra. Ela toma consciência de que corresponde a ela dar finalmente uma resposta à provocação dos sinais esboçados sobre o pó. Trata-se de aproveitar daquela página de misericórdia, de confiança, de perdão que leu, não sobre a terra, mas no olhar dele. Volta para sua casa transformada, recriada.
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: A “pedra na mão” é fácil encontrá-la também em nossas vidas. O convite de Jesus a reconhecer nosso pecado é a única via para que essa pedra não caia sobre nenhum inocente e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da mudança.
A arrogância também é nossa; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de nossas críticas amargas, dos comentários maldosos... A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias.
- Contemplar as “pedras” presentes na própria mão (contra quem costuma lançá-las?...)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.04.2025
“Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15,2)
Com seu talento artístico, Lucas nos relata a Parábola do Pai Misericordioso, contada por Jesus, de tal forma que, ao longo da história, as pessoas sempre se sentiram tocadas e provocadas por ela.
A parábola é a expressão humana da misericórdia divina. A ênfase é menor no filho do que no Pai. Na verdade, Jesus “pinta” o rosto do seu Pai e nosso Pai. Todos os detalhes da figura do Pai-Mãe – seus gestos afetivos de acolhida – falam do amor de Deus pela humanidade, amor que existiu desde sempre e continua.
Jesus de Nazaré foi um homem, talvez o único, que viveu e comunicou uma experiência sadia de Deus, sem desfigurá-la com os medos, ambições e fantasmas que, normalmente, as diferentes religiões projetam sobre a divindade.
Esta é a melhor imagem de Deus: um pai comovido até suas entranhas, acolhendo os seus filhos perdidos e suplicando a todos que se acolham mutuamente com o mesmo carinho e afeto; um pai compassivo que busca conduzir a história da humanidade até a festa final onde se possa celebrar a vida e a libertação de tudo o que escraviza e degrada o ser humano.
Esta experiência da compaixão de Deus foi o ponto de partida de toda a atuação revolucionária de Jesus que o levou a introduzir na história da humanidade um novo princípio de atuação: a compaixão.
(Nota: as traduções bíblicas empregam indistintamente os termos “misericórdia” e “compaixão”. Melhor falar de compaixão, pois sugere maior proximidade (padecer com aquele que sofre). “Ter misericórdia” pode fazer pensar em uma relação que se estabelece com quem está mais abaixo).
É a compaixão o princípio que deve inspirar a conduta humana. Ela não é, para Jesus, uma virtude a mais, mas a única maneira de se assemelhar a Deus, o único modo de olhar o mundo como Deus o olha, a única maneira de sentir as pessoas como Deus as sente, a única forma de reagir diante do ser humano como Deus reage. Fomos criados à imagem e semelhança do Deus compassivo.
Sem o horizonte inspirador da compaixão divina o ser humano deixa aflorar o que é mais destruidor: ódio, intolerância, preconceito...
Na parábola, Jesus descreve duas atitudes que todos nós conhecemos: os dois filhos representam os dois polos que também encontramos em nós mesmos. Um dos polos é nosso desejo de escapar dos limites impostos por regras e leis: o filho mais jovem quer fugir das limitações familiares e simplesmente conhecer a vida com todos seus altos e baixos; e há o outro polo, aquele que se aborrece com a misericórdia do pai.
O filho mais jovem não quer viver sua vida conforme as expectativas dos outros, quer viver sua própria vida e desfrutá-la ao máximo. Esse anseio por vitalidade, por uma vida no aqui e agora, de não querer se preocupar com o futuro, é típico dos nossos tempos. Mas, essa atitude leva o filho a perder-se a si mesmo. Ele vive desenfreadamente: perde toda estrutura e estabilidade, desperdiça sua riqueza, desgastando-se com coisas inúteis, que logo o esvaziam e passa a sentir-se cada vez pior. Ele, que sempre quis estar livre, agora precisa submeter-se à dependência de um estranho para sobreviver; no final, encontra-se num chiqueiro entre os porcos, que, para os judeus, era a pior degradação que um ser humano poderia cair.
O “filho mais novo” parte para o exterior, “para uma terra longínqua”. Pensa resolver seus problemas partindo para longe de seu coração profundo, para longe de si mesmo. Deixa-se arrastar por um impulso desordenado, que o domina por inteiro. Perdeu toda a liberdade verdadeira. Mas, parte também para longe de sua fonte: o Pai. Passa a decidir sua vida sem referência alguma ao lar, às relações filiais e fraternas; não pode mais se alimentar com o pão da sua casa, mas com a comida que os porcos comiam. É assim que vai viver a fome interior e exterior.
A conversão do filho mais novo só pode ser vivida na volta do exílio, no retorno ao centro.
O caminho de volta é expresso em poucas palavras, de maneira extremamente densa, fulgurante: “e, caindo em si, disse...” Ele faz o caminho em sentido inverso: volta ao seu coração, à sua fonte.
Ele próprio é quem descobre o seu caos, sua desordem. Através de um doloroso e, provavelmente, longo caminho, sai da ilusão sobre si mesmo e descobre sua verdade. Retoma contato com o seu coração profundo. No silêncio, escuta, deixa-se ensinar e, então, cavando fundo em si, como se cava em um campo, descobre o tesouro, a fonte de sua existência, a presença do Pai. Embora não o conhecesse totalmente, encontra um Pai justo, que nunca o expulsará. Pela primeira vez, toma conhecimento de um amor seguro, estável, sólido que, ao mesmo tempo, é verdadeiro.
Nesse momento, iluminado a partir do interior, pode dizer: “Pequei”. E o faz de maneira honesta, sem reserva, sem se justificar. Não esconde mais a sua verdade interior. Agora, o seu olhar modificou-se: pode assumir aquilo que é, aquilo que viveu. A misericórdia do pai é uma misericórdia paciente, que sabe esperar; e é, ao mesmo tempo, uma misericórdia inquieta, apressada, que corre ao encontro do filho para devolver-lhe a filiação perdida. Por isso ordena aos servos que sejam eliminados imediatamente todos os sinais da degradação e da escravidão do filho e todos os sinais dos sofrimentos e das humilhações que sofreu.O pai veste o filho com todos os sinais de liberdade; a liberdade que fora buscada longe de casa, agora é encontrada no calor do seu próprio lar.
Por outro lado, “filho mais velho” exprime vivamente a sua revolta: “jamais transgredi um só dos teus mandamentos”. O problema fundamental dele é acreditar-se sem pecado. Crê-se justo e, consequentemente, possui um coração de justiceiro. Ele está cheio de si mesmo e se engana.
Jamais encontrou o amor, provavelmente porque foi incapaz de deixar-se questionar ou de se converter. Busca, antes de tudo, um legalismo e um perfeccionismo de ordem superficial e ilusória. Assim, fica de fora, sozinho e sem alegria, longe do relacionamento e da festa.
O Pai faz a festa para o filho perdido e reencontrado. Mas ama também aquele que ficou em casa, ao seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria do reencontro. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado.
O Pai vai também procurar aqueles que tem um coração de pedra, egoístas e invejosos. O surpreendente não está só no fato do pai correr ao encontro do filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”.
O pai não repreende e nem acusa seu primogênito; ele o convida para a alegria – e esse convite se estende a nós, que também temos esse lado do irmão mais velho. A parábola não diz se o irmão mais velho aceitou o convite. Deus não nos força a nada. Ele nos convida: se aceitarmos o desafio da parábola e a ouvirmos com o coração, ocorrerá uma ampliação do nosso espaço interior confinado, o nosso coração se abrirá. Então poderemos perdoar a nós mesmos e aos outros; o rosto divino da misericórdia se resplandecerá em nós. Seremos presenças misericordiosas.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: todos nós deixamos transparecer as marcas de cada um dos personagens da parábola.
- Considerar, diante de Deus, quando você vive atitudes do filho mais novo, do mais velho e do pai.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.03.2025
imagem: Filho pródigo -Rembrandt
“Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João, e subiu à montanha para rezar” (Lc 9,28)
O tema do Ano Jubilar (“Peregrinos de esperança”) vem confirmar que somos todos peregrinos, pessoas num processo dinâmico de crescimento e amadurecimento. Cada um de nós deve marchar corajosamente seguindo seu próprio ritmo, escalar suas próprias montanhas, ter um horizonte inspirador.
Às vezes, parece-nos mais seguro continuar na velha e conhecida trilha ou ser parte do rebanho. A estrada menos trilhada parece ser a mais arriscada.
No entanto, somos todos peregrinos, cada um a caminho do próprio destino. A estrada não é igual para todos. Cada um de nós é dotado de um potencial imenso e único.
Vivemos uma itinerância que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas da nossa espiritualidade; um percurso revelador, que deixa transparecer nossa verdadeira identidade. Todo caminho nos “trans-figu-ra”, porque desperta nossa essência, ativa nossos melhores recursos, faz emergir nossa nobreza interior.
Uma eterna tentação também habita o ser humano: é mais cômodo e seguro ficar sentado à beira do caminho. Mas, ficar sentado é estagnar, é não crescer, é perder o caminho e se acomodar. É aceitar ser menos. É conformar-se em ter a mediocridade como horizonte; é ter vida “des-figurada”.
Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal, a sua esperança.
É corajoso e persistente. Faz amigos e companheiros de caminhada. Vida “trans-figurada”.
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro.
O tempo litúrgico da Quaresma vem nos arrancar de nossa mediocridade e de nossa acomodação; ele nos sintoniza com Aquele que é o Peregrino por excelência. Por ser Peregrino, Jesus vive sempre “trans-figurado”.
Mas os evangelistas querem destacar um momento mais denso na vida transfigurada de Jesus. Por isso, o evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos move a “subir” com Jesus ao Monte Tabor, para ali vislumbrar a verdadeira identadade d’Ele e também a nossa.
A experiência de Montanha, portanto, significa experiência de trans-figuração, ou seja, nos revela nosso ser essencial, nos faz ir além de nossa aparência para captar nossa riqueza interior, nosso eu original.
Como aconteceu a Pedro, Tiago e João, Jesus também nos tira do caminho e nos leva consigo para nos fazer testemunhas e partícipes de seu encontro com o Pai, deste fato central em sua vida: experimentar-se como Filho Amado.
Tal relato nos convida a estar atentos diante da presença próxima e amorosa de Deus, como filhos e filhas amados(as), e a experimentar o encontro com Ele que nos “transfigura”.
A experiência de intimidade com o Pai está narrada com todos os elementos das teofanias bíblicas: subida ao monte (lugar em que Deus habita), vestimentas resplandecentes e personagens centrais da história do povo que nos conectam com a Lei e os Profetas. Mas estes elementos da teofania não nos devem tirar a nossa atenção do foco. A importância e a grandiosidade da proximidade de Deus não está na “roupagem” brilhante, mas na profundidade da experiência de Jesus, que se vê e se sente a si mesmo profundamente amado como Filho. Ele é o Filho amado do Pai, de seu Abbá. É desta experiência que os três discípulos são testemunhas. É ali, ao descobrir Jesus como Filho amado de Deus, que eles se sentem chamados a escutá-lo; ali também brota uma atração irresistível de permanecer com Ele, na montanha.
Pedro, em nome dos outros, se sentiu atordoado e pensou que já tinha chegado à hora final da Lei, do mundo e da história. E, no meio do espanto, disse: “façamos três tendas!”. Tendas, para que fiquem acampados e assim possam conservar o brilho de Deus para sempre; tendas de campanha que logo se tornarão imensos mosteiros, catedrais, basílicas gloriosas, para descansar, para admirar.
Mas, a questão verdadeira foi e continua aberta. Há um “Pedro” que continua sonhando com “templos suntuosos” e “vestes resplandecentes”, enquanto Jesus continua dialogando em meio à nuvem, com Moisés e Elias, sobre a forma de subir a Jerusalém, realizando o grande “êxodo”, o caminho que conduz à nova humanidade.
O Monte da Transfiguração é “parada inspiradora”, lugar da escuta e do discernimento, ambiente privilegiado para iluminar a opção do caminho a ser realizado.
Nesse sentido, o evangelho da transfiguração nos ajuda a descobrir nossa capacidade de escuta. Quantas vezes entramos no mais profundo de nosso ser (Tabor) para que ressoe em nós a mesma voz que Jesus ouviu: “És meu filho amado; és minha filha amada”?
Como escuto? Que palavras fazem que meus ouvidos se ampliem, para ouvir melhor? A quem fecho meus ouvidos? Que ruídos me impedem escutar atentamente o que de verdade vale a pena?
Se não fazemos silêncio em nossa vida, como vamos poder escutar as provocativas palavras que o Abbá nos diz ao coração? Se não cuidamos da experiência de sermos filhos e filhas de Deus, de onde tiraremos a força para viver cada dia?
Esta experiência de interioridade nos trans-figura, nos transforma radicalmente. Fomos criados à imagem e semelhança do bom Deus; só no silêncio podemos escutar cada dia a Palavra que nos ajuda a viver uma contínua conversão, a crescer como filhos e como irmãos, especialmente das pessoas mais pobres.
Nossa vida não se resume a pura aparência ou exterioridade, mas podemos dizer que trazemos a trans-figuração em nosso DNA.
A oração é o caminho deste retorno para dentro de nosso ser. Temos necessidade de um mundo interior, de um gosto pela “solitude” (solidão habitada), de um tempo de silêncio, de uma experiência de deserto...
Há situações humanas ante as quais nos encontramos despojados de nossos papéis, nossos títulos, nossos instrumentos de trabalho, nossas justificações, nossos disfarces... e não tem outro remédio a não ser acudir às nossas reservas mais profundas para encontrar, não tanto uma explicação, mas uma força e um sentido.
Ao experienciar-nos enraizados(as) em Deus, tornamo-nos fonte de felicidade, de paz e de alegria.
Somos gerados(as) no Amor e para o Amor.
O Amor fundante de Deus perpassa todo o nosso ser e plasma um coração novo, um novo modo de ser, de perceber, de relacionar-nos e de sentir, infundindo-nos uma visão nova de nós mesmos, dos outros, da realidade e de Deus. A pessoa é transformada por dentro.
Isto nos torna herdeiros da “imagem e semelhança” de Deus, que se revelou a Moisés como “EU SOU”.
Todo ser humano, na sua identidade original, é uma faísca irrepetível do “EU SOU”, que reveste com Seu brilho o “eu sou” de cada pessoa.
Cada “faísca” traz, em si, a luz e o amor, o brilho e a vida da Trindade, que a torna única e vive uma relação pessoal no Mistério do Amor. A oração passa a ser o lugar da construção da própria identidade. Por isso, S. Paulo fala que a “nossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Col. 3,3).
Texto bíblico: Lc 9,28-36
Na oração: Inspirados pela transfiguração de Jesus, somos movidos a fazer o mesmo caminho de subida à montanha, para saber quem Ele é, para abandonar nossas tendas ilusórias, para segui-lo, sabendo que o brilho divino de seu rosto está presente em todos os homens e mulheres, e em especial nos marginalizados e explorados.
A oração é o ambiente propício de revelação de nosso Tabor interno, lugar da intimidade com o Senhor, onde cessa todo palavreado crônico, toda imagem egóica, todo pensamento interesseiro... Aqui brota um “sentimento” oblativo, despojado, simples..., através do qual Deus comunica sua Vontade.
- Sua oração: palavreado mecânico, repetitivo, autocentrado..., ou esvaziamento de si na gratuidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.03.2025
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)
Estamos no início do percurso quaresmal, em sintonia com toda a Igreja que celebra o Jubileu ordinário, inspirado no tema: “Peregrinos de esperança”.
Na verdade, os caminhos estão dentro de nós. Sem caminhos nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência. Mas, é preciso perguntar aos caminhos o porque das distâncias, porque às vezes são tortuosos, cansam e são difíceis de serem percorridos. Eles guardam os segredos dos pés dos caminhantes: o peso de sua tristeza, a leveza de sua alegria ao encontrar a pessoa amada, as descobertas surpreendentes, o encontro com o diferente...
Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade... Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.
Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor.
Esta é a grande esperança que dignifica toda a humanidade.
Tornar-nos “peregrinos” é a experiência de uma grande liberdade pela via do desprendimento (coisas, apegos, poder, riquezas, ideias fixas, posturas fechadas, conservadorismo...) e aí se abre a possibilidade de um encontro com o Transcendente, com o Deus Peregrino.
Assim, a contemplação da vida de Jesus nos move à liberdade e se manifesta como um chamado a uma vida mais simples, partilhada, apaixonada, natural, livre, transcendente, intensa, comprometida...
Este é o sentido do relato lucano das “tentações de Jesus no deserto”. Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da Graça.
Com sua austeridade e simplicidade, o deserto não é lugar de experiências fúteis e superficiais.
A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e experimentada no deserto.
Quem anda no deserto sente profundamente o que é o “nada”; o deserto grita o nosso “nada”, nos coloca entre a areia e o céu, o nada e o Tudo, o eu e Deus.
A prática do “deserto” é um fator sempre presente em toda procura séria de Deus.
De Deus viemos. N’Ele somos. N’Ele vivemos. Para Ele caminhamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.
Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo(a) seu(sua) seguidor(a). O mundo, nossa casa sem paredes.
Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.
A tríplice tentação de Jesus no deserto condensa os “impulsos ou dinamismos” mais importantes que o ser humano experimenta e que, quando alimentados, podem afastá-lo do melhor de si: o ter, o poder e o prestígio (fama). Nesse sentido, Jesus não vive para seus interesses, mas em docilidade à Vontade de Deus; Jesus não é um Messias que se impõe pelo poder nem pelo êxito; a única força que o move é a fidelidade ao Pai e à missão.
Para muitos, sempre será tentador utilizar o espaço religioso para alimentar a vaidade, buscar reputação, poder e prestígio. Poucas coisas são mais ridículas no seguimento de Jesus que a ostentação e a busca de honras. Causam danos à comunidade cristã e a esvaziam de sua verdade.
As tentações que são descritas em Lucas não são propriamente de ordem moral. O relato nos está advertindo de que podemos arruinar nossa vida se nos desviamos do caminho que Jesus trilhou.
Jesus, nas suas tentações, não cita a Escritura para justificar seus interesses.
Na primeira tentação, Ele renuncia utilizar o nome de Deus para “transformar” as pedras em pães e, assim, saciar sua fome. Ele não segue esse caminho; não vive buscando seu próprio interesse; não utiliza o Pai de maneira egoísta. Alimenta-se da Palavra viva de Deus e só “multiplicará” os pães para saciar a fome da multidão.
Na segunda tentação, Jesus renuncia conquistar “poder e glória”, e não se submete, como todos os poderosos, aos abusos, mentiras e injustiças nas quais se apoia o poder diabólico. Jesus rejeita a tentação do poder porque, para Ele, não há outro meio de salvação e libertação a não ser a solidariedade até a extrema radicalidade. O Reino de Deus não se impõe, mas se oferece com amor. Por isso, Jesus só adora o Deus dos pobres, dos fracos e indefesos.
Na terceira tentação, Jesus renuncia cumprir sua missão recorrendo ao êxito fácil e à ostentação. Não será um Messias triunfalista. Nunca manipula Deus a serviço de sua vanglória. Está entre os seus como aquele que serve.
A contemplação de Jesus no deserto desmascara aquelas atitudes que afogam em nós a possibilidade de viver o seguimento d’Ele com mais intensidade; tal exercício desmascara nosso modo de viver o cristianismo, acomodado aos critérios do mundo, ou seja: insensibilidade do coração, deixar-nos prender pelas garras do consumismo, concretizado nos “afetos desordenados” ou apegos aos bens, poder, autoimagem, lugares, pessoas, títulos..., que acabam esvaziando nossa vida e nos deslocando do essencial. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
Diante das carências existenciais, surge a tentação de buscar compensações, que exigem investimento afetivo, nos tiram do foco e nos fazem cair em estado de letargia e acomodação. Mas, todas essas compensações têm algo em comum: elas nos fazem adormecer e, desse modo, abortam a novidade que poderia brotar em nós e atrofiam a esperança, pois nos prende ao mais imediato (fixação afetiva).
O caminho da transformação implica reconhecer a importância da vida simples e sóbria. É sábio tomar consciência de que vivemos uma super-excitação do desejo de posse. É preciso fazer a experiência de que podemos prescindir da maioria das coisas que nos são oferecidas. O papa Francisco nos recorda que “a espiritualidade cristã propõe um modo alternativo de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria, sem estar obcecado pelo consumo. É importante adotar um antigo ensinamento, presente em diferentes tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que ‘quanto menos, tanto mais’” (Laudato si’ n. 222).
“Fazer estrada com Jesus” não nega nossas necessidades e desejos naturais, mas reordena nossas prioridades e nos recorda constantemente que Ele está nos chamando e nos atraindo para um modo alternativo de viver, mais humano e mais leve.
Texto bíblico: Lc. 4,1-13
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio.
- No fundo, a questão fundamental é esta: a quê “reino” estou servindo? O “reino” do meu ego, ou o Reinado do Pai, no seguimento de seu Filho?
- Quais “tentações” exercem maior sedução em minha vida? Onde estou investindo o melhor de minha vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Começamos a Quaresma com o rito da “imposição das cinzas”. Há um risco de vivermos a travessia quaresmal contentando-nos com atos externos de penitência, renúncia, mortificações... sem referência à pessoa de Jesus Cristo e sem abertura aos outros. O silêncio do deserto nos ajuda a encontrar nosso centro, a partir de onde podemos acertar em nossas opões vitais, sem cair nas armadilhas do ego.
Esta Quaresma pode ser um marco no nosso caminho, um caminho de Paixão que já estamos vivendo nestes momentos de profundas crises, rupturas sociais e destruição da natureza; quer ser também um caminho de Ressurreição e que não poderá ser uma experiência solitária; ou nos renascemos todos para uma nova humanidade ou este mundo será uma experiência falida.
Há um drama radical que nos afeta a todos e que, cada vez mais, assume um rosto assustador. Trata-se da gravidade da destruição da Casa Comum, com profundas consequências: desmatamentos, secas, poluição ambiental, contaminação das águas...
Precisamos, neste tempo litúrgico especial, despertar nossa consciência ecológica para alimentar um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental que perpassa todas os seres do universo, na forma de uma “rede”. Nenhuma espécie é autossuficiente; todas são interdependentes.
Nós, seres humanos, também fazemos parte desta vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza, desde a menor célula até a vastidão do cosmos. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta.
Para tornar a nossa vida mais fraterna, aberta e comprometida com a causa da vida, a Campanha da Fraternidade da Igreja no Brasil nos situa diante desta dura realidade que nos escandaliza. Com o provocativo tema - “Fraternidade e Ecologia Integral” – e o lema – “Deus viu que tudo era muito bom” (Gen 1,31) - somos chamados a despertar nossa sensibilidade solidária frente a esta grave situação de destruição que nos envergonha.
A ecologia integral começa por uma mudança de mentalidade, por uma nova sensibilidade e deve nos conduzir a uma simplicidade de vida, não consumista, solidária, defensora dos pobres e da natureza, agradecida ao Deus criador do céu e da terra.
A conversão ecológica, à qual o papa Francisco nos convida, afeta todas as dimensões da condição humana: a relacional, a social, a afetiva, a econômica, a política, a espiritual... Assim, através da contemplação reverente, mergulhamos nesse “mar cósmico”, que deixa transparecer a presença divina. “Sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio) nos conduz à iluminação, à profunda serenidade e à integração com o universo.
Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida, tal como foi criada e sustentada por Deus. Há uma íntima relação entre nós, seres humanos, e a natureza. Humanidade e Terra, formamos uma única realidade esplêndida, reluzente, frágil e cheia de vigor. Viemos da Terra e voltaremos à Terra. Somos parte do universo, feitos do mesmo pó cósmico que se originou com a explosão das grandes estrelas vermelhas.
As mesmas energias, os mesmos elementos físico-químicos da Terra circulam por todo o nosso corpo, sangue e cérebro. Somos argila sobre a qual é soprado o Espírito divino que anima e inspira.
Neste início da Quaresma, o gesto de receber as cinzas sobre nossas cabeças tem o sentido de uma mobilização para começarmos a caminhar em direção ao “centro de nosso ser”, conscientes de que este caminho nos humaniza e nos diviniza ao mesmo tempo. Receber as cinzas nos faz entrar em comunhão com toda a natureza e vem reforçar a fraternidade universal: “somos pó, mas pó apaixonado”, habitados pelo Sopro do Espírito.
Para viver com mais intensidade o espírito quaresmal, a liturgia nos propõe três atitudes que nos descentram e nos fazem entrar no ritmo da radical gratuidade: a oração, o jejum e a esmola (caridade fraterna).
Uma vez no deserto com Jesus, devemos ativar a atitude de escuta daquela voz interior que se desperta diante da força da Palavra. A isso chamamos oração. Oramos quando dirigimos nosso olhar a Deus, ao mundo e a nós mesmos. Oramos com a Bíblia, com a natureza, com as notícias, com os desejos, com os medos... Oramos de mil formas diferentes... Na oração expressamos o melhor de nossa vida, e entramos em sintonia com toda a Criação: na intimidade com Deus somos porta-vozes dos clamores da humanidade e de todas as criaturas.
E, se escutarmos profundamente com os sentidos ativos, brotarão gestos de atenção e sensibilidade diante de homens e mulheres que mais precisam de paz, pão e palavra. Chamamos isso de “esmola” (ou “caridade fraterna”), que significa porta aberta para viver a partilha e o encontro com todos, movidos pelo nosso olhar contemplativo e pelas nossas entranhas compassivas.
Depois da esmola e da oração, culminando a trilogia da “justiça” do evangelho de Mateus, vem o gesto da renúncia positiva, não por sadismo ou vitimismo, mas por elevação da interioridade pessoal e pela solidariedade humana. Este é o sentido do jejum da quaresma cristã: ao lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê e para quem vivemos? Só para acumular e encher nossos “celeiros” ...?
Fazer jejum sem despertar uma atitude de solidariedade e de partilha é cair no “farisaísmo egóico”. Falamos de um jejum humano, espiritual e corporal no sentido mais profundo; jejum pessoal, mas que quebra nosso farisaísmo e nos conduz a uma autêntica solidariedade e comunhão com os outros, sobretudo com as vítimas da fome e da miséria.
Jesus, ao recuperar o sentido verdadeiro destas três práticas quaresmais, nos “revela” aquilo que os hipócritas esquecem: a esmola, a oração e o jejum precisam ser vividos no “escondimento”. O essencial da vida, que é o amor, sempre é discreto. O que não é essencial faz barulho, como a vaidade, o prestígio social, o querer despertar uma boa impressão nos outros...; tudo isso é pura hipocrisia.
Quaresma pede humildade e sinceridade de coração. Durante o percurso quaresmal deste ano, também não podemos esquecer o apelo do Papa Francisco para que todas as comunidades cristãs vivam, com sentido e inspiração, o tema do Ano Jubilar: “Peregrinos de esperança”. “Agora chegou o momento de um novo Jubileu, em que se abre novamente, de par em par, a Porta Santa para oferecer a experiência viva do amor de Deus, que desperta no coração a esperança segura da salvação em Cristo” (Bula Papa Francisco, n. 6)
Somos todos peregrinos, mas os viajantes são diferentes. A estrada não é igual para todos. Vivemos uma caminhada que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas do nosso eu profundo.
Mas, ao mesmo tempo, é um caminhar solidário: na peregrinação de cada pessoa estão presentes milhões e milhões de experiências de caminhos vividos e percorridos por incontáveis gerações. A missão de cada um é prolongar este caminho e vivê-lo tão intensamente que aprofunde o caminho recebido, endireite o caminho retorcido e ofereça aos futuros caminhantes um caminho enriquecido com suas pisadas.
Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho, o Peregrino por excelência.Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade. “Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Senhor, mostra-nos teus caminhos! Este é o apelo que se faz mais forte durante o tempo quaresmal. O deserto é, ao longo de toda a Bíblia, um lugar privilegiado para novas experiências do Deus que caminha em meio a seu povo.
Para fazer uma “travessia quaresmal” é preciso uma inspirada preparação e uma mobilização de todo o seu ser.
- Como você se propõe a viver as “três práticas quaresmais”: oração, jejum e esmola?
- O tema da CF deste ano (fraternidade e Ecologia Integral) tem ressonância em seu interior?
- Que gestos concretos você poderia assumir para viver a Ecologia integral?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.03.2025
“... lançai vossas redes para a pesca em águas mais profundas” (Lc 5,4)
Neste 5º. dom. do Tempo Comum a liturgia nos situa no início do cap. 5 de S. Lucas; encontramo-nos diante de um episódio com múltiplos atos: a multidão que se comprime em torno a Jesus para escutar a Palavra de Deus; o ensinamento a partir da barca; o convite a remar mar adentro e lançar as redes; a pesca surpreendente; a confissão da indignidade de Pedro; o chamado dos discípulos e o imediato seguimento.
O relato não nos diz sobre o que Jesus falava, mas o que segue nos dá a verdadeira pista para descobrir do que se trata; tal relato abre um horizonte novo na vida das pessoas e nos convida a conhecer Jesus mais profundamente e a conhecer-nos a nós mesmos; só assim o seguimento se revela mais inspirado.
No evangelho deste domingo Lucas dá um destaque ao chamado dos primeiros discípulos. Marcos e Mateus situam este chamado no início da vida pública de Jesus. Lucas o narra de uma forma mais compreensível, mais lógica, depois de apresentar Jesus como Mestre nas sinagogas, como o libertador de um endemoniado, como presença terapêutica na cura da sogra de Pedro e dos doentes com diversas enfermidades. Assim, ele nos transmite que o seguimento significa identificação com Jesus e o prolongamento de suas obras.
A primeira parte do relato nos convida a contemplar Jesus ensinando, junto ao lago de Genesaré. Diante da crescente multidão, sobe à barca de Simão e lhe pede para que a afastasse um pouco da terra. Sua presença muda o significado da barca: não é só instrumento de pesca, mas torna-se o “novo púlpito” a partir de onde Ele passa a ter uma visão mais ampla da multidão que o escuta. Pastoral nos espaços amplos ou no descampado, à margem da “sinagoga”, fora dos espaços sagrados.
Jesus se deixa conduzir pela criatividade do Espírito, que rompe os lugares estreitos e controlados. Seu “templo” é a vida, o lugar cotidiano das pessoas. Ali, o anúncio da Boa Notícia do Reino encontra muito mais ressonância no coração das pessoas, sobretudo aquelas que não tinham “lugar” nos templos.
A segunda parte do relato descreve a pesca abundante e surpreendente; os pescadores retornam ao trabalho por iniciativa de Jesus: “remai mar adentro e lançai vossas redes para a pesca” (literalmente: “voltai para a profundidade e fazei descer vossas redes para a pesca”).
A tradução oficial da CNBB diz: “Avançai mais para o fundo, e ali lançai vossas redes para a pesca”, destacando o esforço pessoal dos pescadores. Pedro e seus companheiros revelam-se ser pessoas “arrisca-das”, inclusive ousados, por acreditarem em Jesus na realização de sua tarefa. Jesus lhes pede um novo esforço, os leva a novos mares, e eles assumem a atividade sem resistência.
No fundo, eram homens “aventados” (com o sopro do bom Espírito), pois foram capazes da arriscar, lançando as redes em um horário impróprio (de manhã); sabemos que os pescadores armam as redes ao cair da tarde e as recolhe na manhã do dia seguinte.
“Nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”. O fato de que a pesca abundante seja precedida de um total fracasso, tem um significado existencial muito profundo. Quem nunca teve a sensação de ter trabalhado em vão durante décadas? Só teremos êxito quando nosso trabalho se situa no horizonte do sentido: para quem trabalhamos? É para o Reino? É para o bem dos outros...? Isto quer dizer que devemos agir de acordo com a atitude vital de Jesus, para além de nossas posições raquíticas e rasteiras. O que o relato nos pede é algo muito diferente: deixar Jesus Cristo entrar na barca de nossa vida. “Confiando em tua palavra, lançarei as redes”.
Simão já havia presenciado a cura de sua sogra. Sua confiança em Jesus aumenta com a quantidade de peixes que apanharam. A pesca abundante, ao meio-dia, depois do fracasso noturno, é um presente, um sinal da benção divina. Pedro não se considera digno de tal benção, mas reconhece a força de Jesus que tivera a iniciava de mover os pescadores a uma nova tentativa de pesca.
A reação dos pescadores é de assombro e reconhecimento que, talvez, não mereciam tanto. Mesmo assim, superado o primeiro impacto emocional, eles encontram um sentido novo e uma direção diferente para avançar na vida. Jesus os chama explicitamente – “eu vos farei pescadores do humano” – ou seja, “eu os convido a que me ajudeis a situar as pessoas em uma posição diferente para recuperar a verdadeira essência da vida”.
Lucas usa a expressão “dsogrón”: reanimador ou despertador de pessoas. Jesus reanima, desperta aqueles rudes pescadores com seu Espírito; tira-os de sua cotidianidade repetitiva, sem criatividade, sem sonhos maiores; abre os olhos deles e os reaviva para prolongar Seu caminho, ou seja, dedicarem-se a despertar o melhor em cada pessoa.
O apelo a lançar “redes em águas mais profundas” é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus convida aqueles pescadores, instalados numa maneira tradicional de pescar, a serem criativos na arte de lançar redes: sair da rotina, buscar o novo e o diferente nas profundezas do mar... Isso dá medo, mas os impulsiona a se deslocarem para o desconhecido, saírem das margens conhecidas, seguras e mergulharem na aventura do próprio Jesus.
Jesus sempre se revelou como o homem integrado que, livremente, teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir as ricas possibilidades, recursos, criatividades, inspirações... Movido pelo Espírito, Ele trouxe o “novo” das profundezas do seu próprio ser: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Ele despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas. Com sua sensibilidade, Jesus foi capaz de tocar naquilo que as pessoas mais amavam (mundo das esperanças, impulsos para uma vida plena...) e o potencializou.
No caso dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior, Jesus os desafiou a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.
"Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada um.
Debaixo das cinzas do cotidiano, encontra-se as brasas da paixão, dos desejos mobilizadores, dos sonhos...
Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desencadeia em todos nós. Ele nos desafia a descer no mais profundo no oceano do nosso coração e ali buscar o humano que está escondido: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência...
Para isso é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós. Alargar nossos espaços interiores, sermos mais ousados e sonhadores, romper com o “normótico” e tradicional, ativar e des-velar o que está escondido. Assim, com nossa presença humanizadora, seremos capazes de pescar o “humano” que também está presente no outro.
Sejamos pessoas que, saindo ao campo da vida, tenhamos a oportunidade de também tornar melhores os outros com quem nos encontramos!
Texto bíblico: Lc. 5,1-11
Na oração: Pedro e seus companheiros desejavam algo novo; no entanto, romper com a normalidade na arte de pescar estava para além de suas possibilidades. Foi necessário que Alguém de fora os incitasse ao abandono daquele modo arcaico de pescar.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.02.2024
“Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
No oriente, esta festa é conhecida como “o encontro”; no Ocidente, tomou o nome de “purificação de Maria” ou “candelária”, porque a cerimônia mais vistosa deste dia era a procissão das candeias, ou seja, quarenta dias depois do nascimento de Jesus (fechando o ciclo do Natal), os cristãos (especialmente as mulheres) iam às igrejas com velas/candeias, dando graças pela vida.
Na nova liturgia, a festa deste dia chama-se “apresentação do Senhor”; nela retoma-se o simbolismo da Epifania, recordando Jesus como Luz de todos os povos.
Falamos de nova Epifania quando Jesus é manifestado a Israel, representado por dois idosos (Simeão e Ana) que estavam no Templo, alimentando uma esperança que agora se realiza: tomar nos braços o Menino Salvador. Na primeira Epifania, os Magos, depois de adorarem o Menino, regressam às suas terras por outro caminho. Agora é a Epifania daqueles que também querem “partir” com a vida plena e realizada.
O relato do nascimento de Jesus em S. Lucas é desconcertante: não há lugar para acolhê-lo; os pastores o encontram deitado em um presépio, sem outras testemunhas a não ser Maria e José. Temos a impressão que Lucas sente a necessidade de construir um segundo relato no qual o menino é resgatado do seu anonimato para ser apresentado publicamente. E o Templo de Jerusalém é o lugar mais apropriado para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus a seu povo.
Mas, de novo, o relato de Lucas é desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com o menino, não são os sumos sacerdotes nem os demais dirigentes religiosos que saem ao seu encontro. Também não é recebido pelos mestres da Lei que pregam suas “tradições humanas” nos átrios do Templo.
Jesus não encontra acolhida nessa religião fechada em si mesma e distante do sofrimento dos mais pobres; não encontra amparo em doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais humana.
Somente os olhos apagados de dois idosos (Simeão e Ana) conseguem ver o Salvador; somente os braços cansados desse casal ancião conseguem abraçar o Salvador; somente eles conseguem estreitar em seus corações Aquele que é a Esperança dos povos. Uma vida cheia de promessas e esperanças; agora, marcados pela gratidão, cantam de alegria e louvam o privilégio de acolher a Quem tinham esperado durante toda uma vida.
O mundo está cheio de mistérios grandiosos que cobrimos com a rotina e as pressas. Falta-nos capacidade de assombro e pureza no olhar. Quando o mundo é visto tão somente com os olhos estreitos e interessados, os encantos e as surpresas da vida passam desapercebidas e se tornam realidades opacas, ambíguas, obscuras.
Os modos de agir de Deus são discretos, quase escondidos; só um olhar contemplativo consegue perceber. Por isso, podemos evocar aqui o ícone da Apresentação de Jesus no Templo, onde o Espírito convoca todos os personagens e os faz coincidir em uma festa de promessas cumpridas. Todo o relato do evangelho deste domingo está atravessado de cotidianidade, tudo transcorre “sob a lei” e alguns ritos. Simeão e Ana são presenteados com o privilégio de contemplar o Salvador, porque souberam esperar e permanecer na fidelidade; souberam contemplar, na vulnerabilidade de um menino, o desejado de Israel.
Na passagem de Lucas, nem os sacerdotes do templo, nem os mestres da lei, nem os legitimados pela religião ou pelo poder social reconhecem no Menino a presença do Salvador. Aqui falam os pequenos e os simples; aqueles que não costumam ter palavra – pastores, pagãos, idosos – são os que veem mais além, maravilham-se, reconhecem e confessam. E com eles devemos estar, se queremos também reconhecê-Lo.
Podemos dizer que o Nascimento de Jesus está rodeado de idosos(as); os anciãos são despertados: primeiro foi Zacarias; logo depois, Isabel. Mais tarde Simeão e Ana.
Simeão, aquele da promessa de que não morreria sem ver o Salvador. Ana, a profetisa que dá graças a Deus e fala do menino a todos os que aguardam a libertação de Jerusalém.
A cena da “apresentação de Jesus” nos faz recordar e compreender o valor e a importância da presença dos anciãos, sobretudo entre as crianças e os jovens. Eles são um tesouro.
O Papa Francisco nos diz: “Nós vivemos em um tempo no qual os anciãos não são contados. É feio dizer isso, mas eles são descartados porque atrapalham”. No entanto, “os anciãos são aqueles que nos trazem a história, a doutrina, a fé e nos deixam como herança. São como o bom vinho envelhecido, isto é, tem dentro de si a força para nos dar essa herança nobre”.
Jesus é “apresentado” publicamente no Tempo; mas, só dois idosos desconhecidos saem do “anonimato” e cantam a esperança que os alimentara tanto tempo. Seus olhares cansados conseguem ver naquela criança a esperança realizada do Povo de Israel.
O velho Simeão personifica a justiça e a piedade israelita; representa o povo que escuta a Deus, que recebe seu Espírito e espera a chegada do Messias. Não tem idade, não é de agora nem de antes; é de sempre, é a plenitude da esperança. Recebeu a promessa de ver a Cristo Senhor antes de morrer e vive somente para isso. Assim, quando chegam os pais de Jesus, ele se apresenta, toma o menino em seus braços e bendiz a Deus dizendo: “Agora, Senhor, podes deixar teu servo ir em paz...”
Soube esperar; agora, sabe esperar a morte com serenidade. Sua vida culminou, teve sentido tudo o que tinha feito. Agora pode morrer com a esperança realizada, como indivíduo concreto e como patriarca, representante do povo, condensado em sua pessoa. O verdadeiro Israel, que é Simeão, cumpriu sua missão esperando o Salvador em quem todos os povos se vinculam no gesto de paz. Toda uma vida centrada numa promessa; toda uma vida carregada de esperança; toda uma vida que não se cansa de esperar.
Simeão viveu e envelheceu crendo numa promessa; viveu e envelheceu sem cansar-se de esperar. A luz tardou em iluminar; a noite foi longa para envelhecer. Mas, a esperança é assim: não tem hora; as esperanças semeadas no coração terminam amanhecendo. Começa a fazer-se luz quando seus olhos já estão se apagando. Pode abraçar o Salvador prometido, quando seus braços já estão cansados.
O evangelho de hoje nos fala também de outra grande mulher, cuja pequenez enaltece: Ana, a profetisa.
Ana conectou sua vida com as batidas do coração de Deus, esteve sempre em oração, sempre no Templo, em sintonia com uma esperança que pairava no ar. Ela nos fala da espiritualidade do esvaziamento de nossos egos inflados, nossas soberbas, saindo de nós mesmos para deixar espaço ao Menino, colocando nossa voz, nossas pessoas, nossas vidas para torná-lo conhecido entre todos. O importante é falar do Menino, como Ana; ser profetas e profetisas, em seu nome.
Ana, a profetisa, pode nos comunicar algo do segredo da esperança. Para isso, como esta idosa, conectemos com esse pulsar que, se estivermos atentos, sentiremos em nossas entranhas. Deixemos que a Ana profetisa que há em todos nós, tenha vida e fale a todos do Menino. Despojemo-nos de tudo o que nos impede ser Ana, daquilo que não nos deixa ser profetas e profetisas.
Esqueçamos nossa mediocridade e deixemos levar, deixemos fluir a Vida de Deus em nós, em nosso entorno. Sejamos como Ana, portadora da Boa Notícia do Menino, tão pequeno e tão grande.
Em seguida, a família de Jesus retorna ao cotidiano de Nazaré; ali, o Menino “crescia” e se “humanizava”. De fato, o ambiente familiar é o lugar privilegiado para o amadurecimento físico, espiritual, social... de todo ser humano. É também o espaço propício para que cada um vá desenvolvendo e ampliando suas capacidades, seus sonhos, seu projeto de vida... Se Jesus, mais tarde, pregou e viveu o amor, a entrega, o serviço, a solicitude para com o outro, quer dizer que Ele foi incentivado a viver tudo isso no seu ambiente familiar. Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz.
Ele viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do seu povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: “Não é necessário que alguém me apresente diante de Deus. Sei que sou mais d’Ele que de mim mesmo e eu nada seria se me separasse d’Ele. Essa realidade desconcertante me ultrapassa. Uma vez descoberta e aceita, me abre possibilidades infinitas como ser humano” (Fray Marcos).
- Como integrar, na sua vida, estes dois ambientes: Jerusalém e Nazaré?
- Rezar o seu “cotidiano” familiar, comunitário, profissional, social... Sua presença “faz diferença”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.01.2025
“... após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo” (Lc 1,3)
Neste terceiro domingo do Tempo Comum, a liturgia nos convida a um passeio pelos primeiros capítulos do terceiro evangelista. O texto de hoje nos dá boas-vindas ao Evangelho de Lucas; em seguida, salta os relatos da infância e do batismo de Jesus. Depois de procurar dar solidez aos testemunhos da comunidade lucana e a tudo o que foi fixado por escrito a respeito de Jesus, nos situa diretamente em sua vida pública, já com o discernimento feito, durante o tempo do deserto, sobre o sentido de sua missão.
Antes de começar a narrar o ministério da vida pública, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsionou Jesus e qual foi o horizonte de sua atuação. Os cristãos devem saber em que direção o Espírito de Deus conduziu Jesus, pois segui-Lo é precisamente caminhar em sua mesma direção.
Lucas nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. O Evangelho de hoje marca o início da missão de Jesus: conduzido pela força do Espírito, Ele começa justamente lá onde “ninguém era capaz de dirigir o olhar e o coração”.
O relato deste domingo começa com um formato epistolar dirigido a Teófilo. Lucas o situa no princípio do Evangelho e no começo do livro dos Atos dos Apóstolos, para dar-lhe um caráter literário, como se fosse uma longa carta remetida a seu companheiro Teófilo. Mas não é só uma carta subjetiva relatando o que fora experimentado, mas alude a uma investigação diligente para dar consistência e solidez aos fatos que marcaram profundamente Aquele que passou por esta vida fazendo o bem.
Teófilo não é tanto um indivíduo, mas devemos entendê-lo no sentido etimológico da palavra: “Theos”: Deus/”philos”: amigo. Lucas dirige seu evangelho aos amigos de Deus. Deus é amigo, amigo nosso, amigo de todos. Nossa relação com Ele não se fundamenta no poder, na ameaça, na imposição e no domínio, mas na amizade que não alimenta medo, angústia, submissão.
Segundo o Evangelho, somos amigos(as) de Deus (Teófilo), não clientes de uma religião.
“Teófilo” somos todos: Deus é amigo de todos nós. No missal romano há uma oração eucarística na qual se diz: “quando pela desobediência perdemos vossa amizade, não nos abandonaste...). E quem disse que Deus deixou de ser amigo das pessoas? Deus não retirou nunca sua amizade para com o ser humano.
É uma consideração de grande transcendência saber que somos todos amigos e amigas de Deus e que Ele nos tem a todos por seus amigos e amigas. Infelizmente, na vida cristã, dá-se muito maior peso a expressões carregadas negativamente: pecadores, indignos, miseráveis... Fala-se tanto de pecado e de inferno e muito pouco do “Deus amigo” que nos quer bem, que nos ama a todos.
É um bálsamo escutar S. Lucas afirmar que Deus é nosso amigo. O Evangelho de Jesus, portanto, é boa-notícia dirigida aos amigos e amigas de Deus. O Deus de Jesus não é um justiceiro temível a quem devemos aplacá-lo com nossas míseras penitências e mortificações. Deus é amigo; quem é amigo não sufoca o outro com pesadas cargas de leis, culpas e condenações; quem é amigo não se impõe sobre os outros através da obediência cega. Quão distante estamos do “Deus amigo” revelado por Jesus!
Avançando no texto, o evangelista Lucas nos mostra Jesus no início de seu ministério, expondo seu “projeto com vida” na sinagoga de Nazaré. É a etapa do início de sua pregação, de sua vida itinerante e, posteriormente, já em Cafarnaum, o relato de suas primeiras curas e do chamado de seus primeiros discípulos.
Jesus dirige-se à sinagoga, como era costume entre os judeus, e ali lhe entregam o pergaminho onde estava escrito o texto do profeta Isaías (61,1-2). Não há dúvida que Lucas persegue um objetivo claro: fazer deste discurso em Nazaré o programa daquilo que vai ser toda a atuação de Jesus na Galiléia.
A cena na Sinagoga em Nazaré é impactante. Não é casual que Lucas a eleja como ponto de partida de todo o ministério de Jesus. Chama a atenção, antes de tudo, a “ousadia” de Jesus: ele, o carpinteiro do povo, sem título algum, se levanta na sinagoga de seu próprio povo e se reveste da função do escriba, se apresenta como mestre, diante da admiração e espanto de todos.
Lucas descreve com todo detalhe o que Jesus faz na sinagoga: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, ele mesmo busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e senta-se. Todos escutam com atenção as palavras escolhidas por Ele, pois revelam a missão à qual se sente chamado por Deus.
É sintomático que, na leitura do texto de Isaías, Jesus tenha omitido o último versículo: “anunciar um dia de vingança do nosso Deus”. Isso é de muita importância porque desmonta uma falsa imagem de Deus. Jesus se sente com autoridade suficiente para começar a reinterpretar a lei judaica a partir da coerência com sua nova consciência: sentir-se habitado pelo Espírito, que lhe tinha fortalecido no deserto, e pelo amor filial, experimentado no batismo.
De fato, a imagem de um Deus vingativo choca frontalmente com a imagem de um Deus Mãe-Pai que cuida, protege, dignifica e lança ao crescimento, à liberdade e à autonomia a partir de um vínculo profundo.
Trata-se de uma passagem para a consciência adulta centrada na concepção da religiosidade que não se encaixa com a dinâmica infantil do prêmio-castigo diante do bem ou do mal praticado. Jesus nos situa diante de um Deus que habita nosso ser mais profundo e que se manifesta como “graça”, como luz, força, cura e autoridade, a partir da dignidade que nos confere. Uma consciência de liberdade que favorece a eleição daquilo que vai dar um sentido profundo à nossa vida. E esta visão vital tem claríssimas consequências como Jesus expõe nessa recuperação do texto de Isaías.
Poderíamos dizer que Lucas apresenta Jesus pronunciando seu “discurso programático”, fruto do discernimento durante sua estadia no deserto, logo após seu batismo. A “força” de seu programa não procede de uma ideologia poderosa, nem de uma determinada religião, nem de um patriotismo doentio; Jesus vive e começa a atuar impulsionado pela “força do Espírito de Deus”. Ele se deixa conduzir, no mais profundo de si mesmo, pelo Espírito; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele.
O modo de ser e viver de Jesus é o do Espírito de Deus. O mesmo Espírito criador e criativo do Gênesis, agora “paira” sobre Jesus: Espírito de vida. O mesmo Espírito que atuou durante o êxodo do povo de Israel: Espírito de Liberdade. O Espírito é brisa suave, descanso, é consolo e ânimo. É o mesmo Espírito de fecundidade e vida (Maria-Jesus). Espírito que move a comunidade cristã, arrancando-a de seus medos. E esse Espírito é paz, alegria, impulso e esperança para viver.
A vida e a missão de Jesus são presididas não por esquemas religiosos, mas pela criatividade, pela liberdade, pela vida, pelo ânimo, consolo... despertados pelo Espírito.
Sob a ação do Espírito, Jesus deixa claro que sua missão é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...
Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher. Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”.
E, ao “fixar os olhos n’Ele”, os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo. As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.
Texto bíblico: Lc 1,1-4;4,14-21
Na oração: Se o que fazemos e proclamamos, como cristãos, não é captado como algo bom e libertador pelos que mais sofrem, que Evangelho estamos anunciando? A que Jesus estamos seguindo? Quê espiritualidade estamos promovendo? Estamos caminhando na mesma direção que Jesus caminhou?
- Inspirado(a) na missão de Jesus, qual é sua missão no ambiente em que você vive? Família, trabalho, comunidade cristã, compromisso social...?
- Sua missão o(a) situa no horizonte do empobrecido, do excluído...?
- Na sinagoga de sua vida, o que prevalece? a preocupação com o rito, com a doutrina, com as leis... ou é lugar de abertura ao mundo do outro?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.01.2025
“Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo:
hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11)
A celebração do Natal deste ano tem um sabor todo especial; podemos vivenciá-lo inspirado no “Ano Jubilar da esperança” - 2025-, cuja abertura acontecerá oficialmente no dia 29 de dezembro/24.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação entra em ação: diante d’Aquele que é “Luz da esperança”, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.
A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se faz visível nas pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa Criança a presença do Inefável.
Na verdade, “entrar” na Gruta do Nascimento de Jesus é sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve apenas para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”. Por este motivo, não podemos entender a esperança como mera “expectativa” que nos afasta do presente cotidiano, na promessa de algo que nos faça sentir melhor, em outro tempo e em outro lugar.
A autêntica esperança nos enraíza no presente. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Hoje eterno” de Deus. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele.
Na contemplação do Nascimento do Menino Jesus, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o cotidiano pode parecer vazio, mas ele aponta para a eternidade; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.
Para além daquilo que possa ocorrer na superfície da história pessoal e coletiva, há uma realidade estável que nos sustenta e que podemos experimentá-la como “rocha firme” sobre a qual firmar nossos pés.
A esperança, portanto, é como esse impulso que desafia o presente imediato e finca raízes no futuro novo; é ela que nos permite escrever nossa história com mais criatividade e ousadia, nos abre à invenção de possibilidades que nos fazem viver com mais sentido, integra o passado e nos faz recomeçar, mantém a coragem de ser, nos mobiliza a passar das puras exigências e das simples necessidades para o dinamismo do dom e do desejo. Na esperança, encontramos a abertura e a amplitude de nossa vida.
Não basta esperar, é preciso uma paixão de esperança, que somente é possível se nos conduz para um horizonte plenificante, para um além da vida do dia a dia.
No Nascimento de Jesus Cristo, Deus realiza um verdadeiro casamento com a humanidade e com o planeta Terra, com toda a diversidade de vidas e com todas as suas riquezas naturais.
Contemplar o Nascimento de Jesus deve nos levar a um mais profundo reconhecimento de que a Terra e o que ela contém fornecem o material para o seu corpo, seu presépio e sua presença no mundo.
Em Jesus, Deus não só se fez Homem, senão “homem pobre e humilde”. A Palavra de Deus não pode ressoar em nós com toda a intensidade se, para nós, palavras como “gruta de animais domésticos, pastores religiosamente impuros, vida cotidiana, ...” não tem um profundo significado experiencial.
Na proximidade contemplativa dos pobres e humilhados encontramos os nomes e verbos nos quais Deus falou em Jesus e onde continua nos falando hoje. Em Jesus encarnado encontramos a pobreza e a humildade de Deus, ao lado de muitas existências pobres e humilhadas. “Fora” e “abaixo”, onde Jesus se manifestou, construímos a “composição vendo o lugar” para situar a contemplação.
Nesta contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez presente para fazer Redenção.
No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.
O “mistério do Nascimento de Jesus” nos diz que a esperança mantém sempre acesa a faísca de luz que todos carregamos dentro. É ela que nos faz cair na conta que somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga; somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, sem nunca nos consumir; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
Jesus é a Luz da esperança que brilha no mundo e na gruta interior de cada um; seu Nascimento revela-se como uma Luz que, do interior de uma Gruta, se espalha e ilumina toda a terra, harmonizando e integrando tudo. Quem se aproxima da Luz se torna luz, reflexo da Luz da Criança de Belém. A vida inspirada pelo Nascimento de Jesus é um “caminhar na Luz”.
O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desbloqueando as ricas possibilidades de humanidade. A luz, por si mesma, é expansiva: “Vós sois a luz do mundo”.
Podemos viver com encantamento a mais simples sensação, o encontro aparentemente mais banal e sentir transparecer através dos seres e das coisas o Rosto do Deus encarnado. Na sua luz, tudo passa da morte para a vida, da ausência para a presença, do tempo para a eternidade.
Para ilustrar concretamente a força inspiradora do Mistério que se revela na Gruta em Belém, há uma fantástica contemplação de um autor que está longe de ser um Padre da Igreja: trata-se de Jean-Paul Sartre, o famoso filósofo do existencialismo e ateu confesso. Quando foi feito prisioneiro de guerra em 1940, ele escreveu, a pedido de seus companheiros de prisão, a espantosa contemplação, como sua contribuição para a festa de Natal que eles queriam celebrar juntos. O título do texto é: “Se eu fosse um pintor”. Aparecem maravilhosamente unidos o humano e o divino, o sensível e o espiritual se entrelaçam intimamente:
“A Virgem está pálida e olha o filho. O que deveria ser pintado em seu rosto é uma maravilhosa ansiedade que só apareceu uma vez em uma figura humana. Pois Jesus é seu filho, carne de sua carne e fruto de suas entranhas. Ela o carregou nove meses e lhe dará o seio e seu leite se transformará no sangue de Deus.
E, em alguns momentos, a tentação é tão grande que ela esquece que ele é Deus. Ela o aperta nos braços e lhe diz: ‘meu pequeno’. Mas, em outros momentos, ela fica confusa e pensa: ‘Deus está aí’ – e ela se sente invadida por um puro medo religioso diante desse Deus mudo, dessa criança assustadora. Pois todas as mães, às vezes, ficam como que paralisadas diante desse fragmento rebelde de sua carne que é seu filho e se sentem exiladas diante dessa nova vida que se fez com a vida delas e que é habitada por pensamentos estranhos. Mas nenhum filho foi tão cruelmente nem mais rapidamente arrancado de sua mãe, pois ele é Deus e ultrapassa em tudo o que ela pode imaginar.
Mas imagino que também existam outros momentos rápidos e misteriosos nos quais ela sente que Jesus, ao mesmo tempo que é seu filho, é Deus. Ela o contempla e pensa: ‘Esse Deus é meu filho. Essa carne divina é minha carne, Ele foi feito de mim, ele tem meus olhos e a forma de sua boca é da minha. Ele parece comigo. Ele é Deus e ele parece comigo’.
E nenhuma mulher teve dessa forma seu Deus somente para ela. Um Deus pequenino que podemos abraçar e cobrir de beijos, um Deus quentinho que sorri e que respira, um Deus que podemos tocar e que está vivo. E é em um desses momentos que pintaria Maria, se fosse pintor, e tentaria reproduzir o ar de confiança suave e de timidez com a qual toca com o dedo a pele suave dessa criança-Deus cujo peso ela sente sobre os joelhos e que lhe sorri”.
Textos bíblicos: Lc 2,1-15
Na oração: Ditosos somos nós se podemos saborear e abraçar a paz e a esperança que brotam do coração que o Menino de Belém nos traz e oferecê-la largamente para que outros possam também receber seu dom; sem defesas, sem preços, sem temores.
A “memória agradecida” do tempo do Natal nos abre os olhos e todo o nosso ser para o grande presépio que é realidade, grávida de ricas possibilidades e novidades, de sorte que nos associemos à grande “descida” do Messias para comunicar Vida em Plenitude.
- Quê esperanças você carrega no coração?
Que a esperança, visível na Criança de Belém, se torne uma atitude permanente de vida.
Um inspirado Natal junto aos seus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.12.24
imagem: Rembrandt
O relato evangélico deste 4º. Dom. de Advento nos revela o verdadeiro sentido do “visitar” e ser “visitado(a)”. Logo após a “anunciação”, Maria fecha a porta de sua pequena casa em Nazaré e inicia apressadamente o caminho para as montanhas, a um povoado de Judá, onde vivia Isabel. O impulso de seu coração movia velozmente seus pés.
Vamos nos deixar conduzir por Maria e vamos com ela “de visita” à casa de Isabel.
O Sublime se digna visitar o pequeno; o “Emmanuel” se manifesta nos sinais mais simples: duas mulheres, uma casa, um encontro, uma saudação... O AT e o NT se encontram e se acolhem, fora dos espaços sagrados da religião oficial. A partir de agora, devemos encontrar Deus no cotidiano, na vida. Jesus, já desde o ventre de sua mãe, começa sua missão de levar aos outros a salvação e a alegria. Tudo quer indicar que a verdadeira salvação sempre repercutirá em benefício dos demais; quando alguém a descobre, imediatamente quer comunicá-la. A visita comunica alegria (o Espírito), também à criança que Isabel carregava em seu ventre.
Aquelas mulheres grávidas, esperançadas e cheias de fé, envolvidas no silêncio da promessa de Deus, se encontram e, no mesmo instante do abraço, a palavra se faz presente com a intensidade da compreensão, da alegria e da intimidade compartilhada.
Elas estavam felizes. Isabel gritou de júbilo e “a criança saltou de alegria em seu ventre”. E Maria proclamou exultante a oração de louvor e agradecimento ao Deus da Vida. O “Magnificat” recolhe o louvor da orante que se descobre, a partir de sua humildade, fecundada pelo seu Senhor, dentro da História da Salvação.
“Visitar” implica mover-se, para perto ou longe, sair, colocar-se em marcha, abandonar o espaço de conforto, adentrar-se na realidade da outra pessoa. Por outro lado, a pessoa visitada abre a porta de seu espaço vital e acolhe aquela que vem “de visita”.
“Visitar” exige irremediavelmente investir tempo: quem tem tempo hoje para presenteá-lo desinteressadamente? A visita começa a dar frutos desde o primeiro instante, se há uma boa predisposição. A atitude de quem visita e de quem é visitada é elemento primordial.
Maria permaneceu em casa de Isabel durante três meses e depois voltou para sua casa. Deslocou-se, investiu seu tempo e podemos imaginar o quão maravilhosos foram os três meses que elas passaram juntas, acolhendo-se mutuamente, vendo como a vida crescia dentro delas, cuidando-se, compartilhando...
No contexto social em que vivemos, cada vez mais fragmentado e individualizado, as relações vão se tornando líquidas em manifestações muito superficiais; reduzidas a um mero contato tecnológico através das redes sociais, Whatsapp, Instagram, etc, nos perguntamos se ainda tem significado o fato de visitar, para além de um contato comercial, de captação de clientes, ou do médico quando o paciente não pode se mover da cama.
Depois de empapar-nos do evangelho deste domingo é preciso nos perguntar: a que nos impulsiona o “movimento” de Maria visitando Isabel. E, se realmente, o fato de visitar tem um significado em nossa vida.
Há uma infinidade de pessoas, aí fora, esperando uma visita, um encontro de pessoa a pessoa.
Há muita necessidade de abraços e de afeto, que não se solucionam com “emojis” e fotos com preciosos textos de boas intenções no celular.
Há uma sede de presença física, de escuta, nas alegrias e nas dores de muitas pessoas; há enfermos crônicos que aguardam o consolo de uma visita gratuita e alegre que quebre a sua solidão.
Há muitos idosos que vivem sozinhos, cuja porta da casa nunca se abre para receber, porque ninguém se aproxima para ser recebido. Há muitos imigrantes que ultrapassam fronteiras, fugindo de seus lugares de origem e que precisam ser escutados, recebidos, alentados etc.
No contexto rural de nosso país ainda se conserva o bom hábito de “fazer visitas” e a casa torna-se espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda mútua...
Por outro lado, sobretudo nos grandes centros, as casas estão cercadas por uma parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada, alarmes contra invasores..., impedindo o acesso até dos mais próximos (parentes, amigos...). Com os familiares e amigos trocam-se frias mensagens eletrônicas em vez de visitas; com os desconhecidos, contato virtual descompromissado.
Além disso, há uma doença que afeta praticamente todas as casas: nelas, há muito mais espelhos que isolam as pessoas do que janelas que se abrem para a realidade externa.
As janelas abertas permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando nos fechados em nós mesmos. Elas nos abrem à comunhão com a natureza, com os outros, com a realidade que nos cerca. Elas nos humanizam, pois servem para nos revelar quem somos para os outros e, assim, poder passar da janela à porta que se abre para que eles entrem em nossa vida. Outros rostos precisamos descobrir: rostos feridos, excluídos, carentes de proximidade e abraço.
Dentre as “obras de misericórdia”, citadas no juízo final (Mateus), duas delas fazem referência ao ato de “visitar”: visitar os enfermos e os presos.
Visitar é uma atitude humanizadora; requer um empenho pessoal, um estar atento aos detalhes da vida próxima, do entorno. Visitar não conta nas estatísticas. É uma ação muito silenciosa que não requer estruturas organizativas, nem contratuais. Sua essência está no reconhecimento e na acolhida mútua.
Este “reconhecimento” presente nas duas futuras mães – Maria e Isabel - se prolonga nos nossos “reconhecimentos cotidianos”; no reconhecimento está o “nascimento”, e viver o reconhecimento é, então, nascer a uma nova relação com o outro, numa comunhão profunda. Reconhecer-nos unidos, na diferença
Na Visitação, as duas protagonistas, também, põem em destaque três importantes ações que Jesus depois vai potencializar na sua missão: acolher, animar e acompanhar a vida.
Segundo o Cardeal Martini, Maria, mulher do discernimento, depois da Anunciação, busca a confirmação de sua missão de ser a mãe do Messias. Sabemos que é a consolação que confirma determinada opção.
Na Visitação, Maria encontra três confirmações, através de uma tríplice alegria (três consolações).
Em primeiro lugar, a alegria de João Batista no ventre da mãe; em segundo lugar, a alegria de Isabel que estava grávida em sua velhice e reconhece em Maria a ação de Deus (através de seu canto); em terceiro, a alegria da própria Maria que se expressa no Magnificat.
A saudação na Visitação se transforma em um encontro no qual as duas protagonistas ficam confirmadas em seu afeto, sua fé e admiração. O encontro se converte em comunicação. O espírito de fecundidade que ambas, Maria e Isabel reconhecem como graça em sua carne, se tornou naquele momento graça de comunicação transparente.
E o clima festivo da Visitação se prolonga na história humana das visitas. E o primeiro “Visitador” é o próprio Deus.
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: Deus não é distância e solidão. Ele é comunicação, presença, libertação, visita providente.
Ele está perto. Sua proximidade nos causa espanto: Deus possibilita cada um “entrar” em sua casa e captar em profundidade a sua realidade, perceber a raiz do seu ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições, ilusões, medos...
Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da própria casa, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...
- Como me sinto em minha casa? Preciso abri-la, arejá-la? Modificá-la? Iluminá-la? É acolhedora? Humanizadora?... Tem mais espelhos ou janelas?
- Como está minha casa interior? Preparada para acolher o Senhor que me visita constantemente?
- Há um “lugar sagrado” para Ele? há espaço para os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.12.2024
A primeira palavra da liturgia deste domingo, na antífona de entrada tirada da segunda leitura, é um convite à alegria. Não se trata de uma alegria que procede do exterior, fruto de uma conquista ou de um presente; ela brota da tomada de consciência de que “Deus é Emmanuel”.
Essa alegria, no AT, está baseada na salvação que vai chegar. Hoje estamos em condições de dar um passo a mais e descobrir que a salvação já chegou, porque Deus não tem que vir de nenhuma parte; Ele já veio, está vindo e virá sempre. Nós é que precisamos ativar uma atitude de atenção e vigilância para entrar em sintonia com esta Presença, sempre nova e surpreendente.
Fazendo de todos nós sua morada, Deus nos comunicou tudo o que Ele mesmo é. Não devemos estar alegres “porque Deus está próximo”, mas porque Deus já está em nós. A alegria é como a água de uma fonte: nós só a vemos quando aparece na superfície. Mas antes, ela percorreu um longo caminho que ninguém pode conhecer, através das entranhas da terra. A alegria não é um objetivo a conquistar; é, antes de tudo, uma consequência de um estado de ânimo que se alcança depois de um processo. Esse processo começa pela experiência de “sentir-se habitado”, ou seja, tomada de consciência de nosso verdadeiro ser. Se descobrimos que Deus habita nosso ser, encontraremos a absoluta felicidade dentro de nós.
No evangelho deste domingo (3º dom do Advento), surge uma repetida pergunta: “Que devemos fazer?” As respostas a estas perguntas manifestam muito bem a diferença entre a pregação de Jesus e a de João Batista.
Segundo a mentalidade do AT, Deus estava mais preocupado com o cumprimento de sua vontade expressa na Lei. O Batista segue nessa direção, porque acreditava que a salvação que esperavam de Deus dependia da conduta de cada um. Esta era também a atitude dos fariseus; daí sua escrupulosidade e rigor no cumprimento de todas as leis e normas.
A partir da perspectiva da religiosidade judaica, o Batista pede àqueles que o escutam, uma determinada conduta moral para escapar do castigo iminente. Essa conduta não se refere ao cumprimento de normas legais, como faziam os fariseus, mas manifesta uma preocupação para com os outros. Todas as propostas apresentadas por João Batista estão encaminhadas a melhorar as relações entre as pessoas, a tornar essas relações mais humanas, superando todo egoísmo.
No entanto, o evangelho de Jesus propõe uma motivação mais profunda. O objetivo não é escapar da ira de Deus, mas prolongar a atitude do próprio Jesus, numa vida de entrega aos demais. Ele nos convida a descobrir o amor, que é Deus, dentro de nós mesmos e, como consequência, dedicar-nos a agir conforme às inspirações dessa presença. Para o Batista, a aceitação de Deus depende do que nós fazemos.
O Evangelho, por sua vez, nos diz que a sintonia com essa Presença divina é ponto de partida, e não a meta. Continuar esperando a salvação de Deus é a prova de que não descobrimos ainda essa presença dentro de nós, e continuamos desejando que chegue de fora. S. Agostinho expressou isso com clareza: “Ame e faça o que quiseres”. Este é o melhor resumo da mensagem de Jesus.
A certeza de ter Deus presente em nós não depende de nossas ações ou omissões. É anterior à nossa própria existência. Não ter isto claro, pode nos fazer cair no “ativismo religioso”, onde o centro passa a ser o nosso falso eu que realiza ações em favor dos outros; caímos no perfeccionismo das ações morais, onde transparece o nosso ego inflado, que espera recompensas tanto da parte de Deus como dos outros (elogios, admiração...). Com esta atitude estamos projetando sobre Deus nossa maneira de proceder e nos afastamos dos ensinamentos do evangelho que nos diz exatamente o contrário.
A salvação não está em satisfazer os desejos de nosso falso eu.
Nem sequer a resposta de João Batista pode nos tranquilizar, pois na realização de uma série de obras pode entrar em cena o nosso ego que busca projeção. Não se trata de “fazer” ou deixar de fazer, mas, movido pela Presença que nos plenifica, fortalecer uma atitude oblativa que nos leve a responder, em cada momento, às necessidades concretas do outro que clama por ajuda. O decisivo é que, a partir do centro divinizado de nosso ser, flua humanidade em todas as direções, na mais pura gratuidade.
A experiência de sentir-nos habitados pelo Deus de Amor desperta em nós o sentimento humano mais nobre que é a gratidão; e este sentimento se expressa numa atitude constante de abertura e serviço aos demais.
Na vivência cristã, sempre corremos o risco de transformar o “fazer” em simples ativismo, ou seja, uma ação desprovida de sentido e de direção. De fato, vivemos mergulhados numa cultura de resultados, distraídos e perdidos na variedade de luzes, cores, sensações fugazes, vivências superficiais... A existência inteira faz-se maquinal e rotineira. Caímos numa pura “fazeção”, ou seja, fazer por fazer, fazer para afirmar-nos, fazer para brilhar, fazer para produzir, fazer para nos impor...
Falta uma referência e um horizonte que unifique tudo, que possibilite reorientar e canalizar nossas potencialidades, impulsos, inspirações, que desperte nossa paixão e dê novo sentido à nossa missão.
Para integrar bem os diversos dinamismos da vida, é decisivo centrar no horizonte que inspira nossa vida e nos motiva a fazer o que fazemos e como fazemos. E o horizonte é “ajudar”.
“Ajudar” é, para a espiritualidade do Advento, o horizonte e a chave de integração de nossa vida.
“Ajudar”, como atitude pessoal e comunitária, é o equivalente evangélico “servir”. Um “ajudar” (servir) que brota da experiência de ser “ajudado” (servido) por um Deus servidor.
No “ajudar” dão-se as mãos o amor a Deus e o amor à pessoa humana, a experiência interior e a ação cotidiana, a ação e a contemplação; nele se expressa a profundidade e o enraizamento da pessoa nas exigências cotidianas da vida; nele convergem a busca de Deus e o compromisso com o mundo.
“Ajudar” é oposto do ativismo, que é um fazer “insensato”, sem sentido e sem direção. “Ajudar” é fazer com inspiração, com horizonte de sentido; é perguntar-se continuamente: “por que faço isso? para quem faço?... “Em que posso ajudar?” (D. Luciano M. de Almeida)
“Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor. Tal atitude requer presença gratuita, desinteressada, centrada no bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo-a crescer em liberdade.
“Ajudar” implica possibilitar ao outro ser protagonista de seu processo, devolver a ele a autoria, a autonomia... No “fazer” o centro somos nós, no “ajudar” é o outro; no “fazer” medimos a quantidade, no “ajudar”, a qualidade de nossa ação. No “ajudar” há parceria (mão dupla): na medida em que ajudamos, somos ajudados; na ajuda há um enriquecimento e crescimento mútuo.
“Ajudar” não é substituir os outros naquilo que eles podem e tem de fazer, ou dizendo o que tem de ser feito, mas colocá-los em condição para que eles mesmos se experimentem ajudados, descubram o Deus que ajuda a todos e sintam o impulso para ajudar como ideal de suas vidas.
“Ajudar” os outros, inspirados e animados pelo Espírito de Jesus, é o que torna “espiritual” nossos atos, nossos pensamentos e orações, nossos trabalhos, nossa vida inteira.
“Ajudar” torna “espiritual” nossa vida, toda nossa vida.
Texto bíblico: Lc 3,10-18
Na oração: - Não pergunte a ninguém o que você tem de fazer. Descubra seu verdadeiro ser e encontrará seu modo original de proceder na relação com os outros. Sua meta deve ser a de ativar e expandir o que você já é na sua essência.
Só poderá expandir seu verdadeiro ser se suas relações com os outros são cada dia mais humanas, sem nenhum resquício egóico.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.12.2024
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