Catequese - 21. A oração de louvor
Continuemos a catequese sobre a oração, e hoje damos espaço à dimensão do louvor.
Inspiramo-nos numa passagem crítica da vida de Jesus. Depois dos primeiros milagres e da participação dos discípulos no anúncio do Reino de Deus, a missão do Messias sofre uma crise. João Batista duvida e faz com que lhe chegue esta mensagem – João encontra-se na prisão: «És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?» (Mt 11, 3). Ele sente a angústia de não saber se errou no anúncio. Na vida há sempre momentos escuros, momentos de noite espiritual, e João está a passar um momento como esse. Há hostilidade nas aldeias perto do lago, onde Jesus tinha realizado muitos sinais prodigiosos (cf. Mt 11, 20-24). Ora, precisamente naquele momento de desilusão, Mateus relata um acontecimento verdadeiramente surpreendente: Jesus não eleva ao Pai uma lamentação, mas um hino de júbilo: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Isto é, em plena crise, em plena escuridão na alma de tantas pessoas, como João Batista, Jesus bendiz o Pai, Jesus louva o Pai. Mas, porquê?
Antes de mais, louva-o pelo que é: «Pai, Senhor do céu e da terra». Jesus rejubila-se no seu espírito porque sabe e sente que o seu Pai é o Deus do universo e, vice-versa, o Senhor de tudo o que existe é o Pai, “o meu Pai”. O louvor brota desta experiência de sentir-se o “filho do Altíssimo”. Jesus sente-se filho do Altíssimo.
E além disso Jesus louva o Pai porque prefere os pequeninos. É o que Ele próprio experimenta, pregando nas aldeias: os “entendidos” e os “sábios” permanecem desconfiados e fechados, fazem cálculos; enquanto os “pequeninos” abrem-se e acolhem a mensagem. Ela só pode ser a vontade do Pai, e Jesus regozija-se com isto. Também nós devemos regozijar-nos e louvar a Deus porque as pessoas humildes e simples aceitam o Evangelho. Rejubilo-me quando vejo estas pessoas simples, esta gente humilde que vai em peregrinação, que reza, canta, louva, gente à qual talvez faltam muitas coisas mas a humildade leva-as a louvar a Deus. No futuro do mundo e nas esperanças da Igreja há sempre os “pequeninos”: aqueles que não se consideram melhores do que os outros, que estão conscientes dos próprios limites e dos seus pecados, que não querem dominar os outros, que em Deus Pai se reconhecem todos irmãos.
Assim, naquele momento de aparente fracasso, no qual tudo é escuridão, Jesus reza, louvando o Pai. E a sua oração leva-nos, também a nós leitores do Evangelho, a julgar de um modo diferente as nossas derrotas pessoais, as situações em que não vemos claramente a presença e a ação de Deus, quando parece que o mal prevalece e não há maneira de o impedir. Jesus, que tanto recomendou a oração de súplica, precisamente no momento em que teria motivos para pedir explicações ao Pai, ao contrário passa a louvá-lo. Parece uma contradição, mas a verdade está nisto.
Para quem é útil o louvor? Para nós ou para Deus? Um texto da liturgia eucarística convida-nos a rezar a Deus do seguinte modo: «Não necessitais do nosso louvor, mas através de um dom do vosso amor chamais-nos a dar-vos graças; os nossos hinos de bênção não aumentam a vossa grandeza, mas obtêm para nós a graça que nos salva» (Missal Romano, Prefácio comum IV). Ao louvar somos salvos.
A prece de louvor é útil para nós. O Catecismo define-a assim: «Participa da bem-aventurança dos corações puros que o amam na fé, antes de o verem na glória» (n. 2639). Paradoxalmente, deve ser praticada não só quando a vida nos enche de felicidade, mas sobretudo nos momentos difíceis, nos momentos escuros quando o caminho é íngreme. Este é também o tempo do louvor, como Jesus que no momento escuro louva o Pai. Pois aprendemos que através daquela subida, daquele caminho difícil, daquela vereda cansativa, daquelas passagens desafiadoras, se consegue ver um novo panorama, um horizonte mais aberto. Louvar é como respirar oxigénio puro: purifica-te a alma, faz com que olhes para longe, não te aprisiona no momento difícil e escuro das dificuldades.
Há um grande ensinamento naquela oração que desde há oito séculos nunca deixou de palpitar, a que São Francisco compôs no final da sua vida: o “Cântico do irmão sol” ou “das criaturas”. O Pobrezinho não o compôs num momento de alegria, de bem-estar, mas, pelo contrário, no meio das dificuldades. Francisco estava quase cego e sentia na sua alma o peso de uma solidão que nunca tinha sentido antes: o mundo não mudou desde o início da sua pregação, ainda há aqueles que se deixam dilacerar por disputas e, além disso, ele ouve aproximar-se os passos da morte. Poderia ser o momento da desilusão, daquela extrema desilusão e a percepção do próprio fracasso. Mas naquele instante de tristeza, naquele momento de escuridão, Francisco reza. De que modo reza? «Louvado sejais, ó meu Senhor…». Reza louvando. Francisco louva a Deus por tudo, por todos os dons da criação e até pela morte, que com coragem chama “irmã”, “irmã morte”. Estes exemplos dos Santos, dos cristãos, também de Jesus, de louvar a Deus nos momentos difíceis, abrem-nos as portas de um caminho muito grande rumo ao Senhor e purificam-nos sempre. O louvor purifica sempre.
Os Santos e as Santas demonstram-nos que podemos louvar sempre, nos momentos bons e maus, pois Deus é o Amigo fiel. Este é o fundamento do louvor: Deus é o Amigo fiel, e o seu amor nunca falha. Ele está sempre ao nosso lado, espera-nos sempre. Alguém dizia: “É a sentinela que está próxima de ti e faz com que vás em frente com segurança”. Nos momentos difíceis e escuros, encontremos a coragem de dizer: “Bendito és tu, ó Senhor”. Louvar o Senhor. Isto far-nos-á bem.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.01.2021
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Catequese - 20. A oração de ação de graças
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje gostaria de meditar sobre a oração de ação de graças. Inspiro-me num episódio narrado pelo evangelista Lucas. Enquanto Jesus está a caminho, dez leprosos vão ao seu encontro e imploram: «Jesus, Mestre, tem piedade de nós!» (17, 13). Sabemos que para os doentes de lepra, o sofrimento físico era acompanhado de marginalização social e de marginalização religiosa. Eram marginalizados. Jesus não evita um encontro com eles. Muitas vezes vai além dos limites impostos pelas leis e toca o doente – que não se podia fazer - abraça-o, cura-o. Neste caso, não há contato. À distância, Jesus convida-os a apresentar-se aos sacerdotes (v. 14), que, segundo a lei, estavam encarregados de certificar a cura. Jesus não diz mais nada. Ouviu o seu pedido, ouviu o seu grito de piedade, e envia-os imediatamente aos sacerdotes.
Aqueles dez confiam n'Ele, não permanecem lá até ao momento de serem curados, não: confiam e partem imediatamente, e enquanto caminham, os dez são curados. Então, os sacerdotes poderiam ter verificado a sua cura e readmiti-los na vida normal. Mas aqui está o ponto mais importante: daquele grupo, apenas um, antes de ir ter com os sacerdotes, volta para agradecer a Jesus e louvar a Deus pela graça recebida. Só um, os outros nove continuam o caminho. E Jesus observa que aquele homem era samaritano, uma espécie de “herege” para os judeus daquela época. Jesus comenta: «Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?» (17, 18). A narração é comovedora!
Esta narração, por assim dizer, divide o mundo em dois: os que não agradecem e os que o fazem; os que tomam tudo como se lhes fosse devido, e os que aceitam tudo como dom, como graça. O Catecismo escreve: «Qualquer acontecimento e qualquer necessidade podem transformar-se em oferenda de ação de graças» (n. 2638). A oração de ação de graças começa sempre a partir do reconhecer-se precedidos pela graça. Fomos pensados antes que aprendêssemos a pensar; fomos amados antes que aprendêssemos a amar; fomos desejados antes que brotasse um desejo no nosso coração. Se olharmos para a vida desta forma, então o “agradecimento” torna-se o motivo-guia dos nossos dias. Muitas vezes esquecemos até de dizer “obrigado”.
Para nós, cristãos, a ação de graças deu o nome ao Sacramento mais essencial que existe: a Eucaristia. Com efeito, a palavra grega significa exatamente isto: agradecimento. Como todos os crentes, os cristãos bendizem a Deus pelo dom da vida. Viver é, sobretudo, ter recebido a vida. Todos nós nascemos porque alguém desejou a vida para nós. E esta é apenas a primeira de uma longa série de dívidas que contraímos vivendo. Dívidas de gratidão. Na nossa existência, mais do que uma pessoa fitou-nos com um olhar puro, gratuitamente. Muitas vezes são educadores, catequistas, pessoas que desempenharam o seu papel além da medida exigida pelo dever. E eles fizeram surgir em nós a gratidão. A amizade é também um dom pelo qual devemos estar sempre gratos.
Este “obrigado”, que devemos pronunciar continuamente, este obrigado que o cristão partilha com todos, dilata-se no encontro com Jesus. Os Evangelhos atestam que a passagem de Jesus suscitava frequentemente alegria e louvor a Deus naqueles que o encontravam. As histórias de Natal são povoadas de orantes, cujos corações foram alargados pela vinda do Salvador. E também nós fomos chamados a participar neste imenso júbilo. Isto também é sugerido pelo episódio dos dez leprosos que foram curados. Naturalmente, todos eles ficaram felizes por ter recuperado a saúde, podendo assim sair daquela interminável quarentena forçada que os excluía da comunidade. Mas entre eles havia um que acrescentou alegria à alegria: além da cura, regozijou-se por ter encontrado Jesus. Não só está livre do mal, mas agora também tem a certeza de ser amado. Este é o núcleo: quando agradeces, expressas a certeza de seres amado. Este é um passo grande: ter a certeza de ser amado. É a descoberta do amor como a força que governa o mundo. Dante disse: o Amor «que move o sol e as outras estrelas» (Paraíso, XXXIII, 145). Já não somos viajantes que vagueiam por aqui e por ali, não: temos uma casa, habitamos em Cristo, e desta “morada” contemplamos o resto do mundo, e parece-nos infinitamente mais bonito. Somos filhos do amor, somos irmãos do amor. Somos homens e mulheres de graça.
Portanto, irmãos e irmãs, procuremos estar sempre na alegria do encontro com Jesus. Cultivemos a alegria. O diabo, ao contrário, depois de nos ter enganado – com qualquer tentação - deixa-nos sempre tristes e sozinhos. Se estivermos em Cristo, nenhum pecado nem ameaça nos pode impedir de continuar o nosso percurso com alegria, com os nossos numerosos companheiros de caminho.
Acima de tudo, não deixemos de agradecer: se formos portadores de gratidão, o mundo também se tornará melhor, talvez só um pouco, mas é suficiente para lhe transmitir um pouco de esperança. O mundo precisa de esperança e com a gratidão, com esta atitude de dizer obrigado, transmitimos um pouco de esperança. Tudo está unido, tudo está interligado, e cada um pode desempenhar a sua parte onde quer que esteja. O caminho para a felicidade é aquele que São Paulo descreveu no final de uma das suas cartas: «Orai sem cessar. Dai graças em todas as circunstâncias, pois a respeito de vós esta é a vontade de Deus, em Jesus Cristo. Não extingais o Espírito!» (1 Ts 5, 17-19). Não extingais o Espírito, bom programa de vida! Não extinguir o Espírito que temos dentro leva-nos à gratidão.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.12.2020
SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Nesta noite, cumpre-se a grande profecia de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Is 9, 5).
Um filho nos foi dado. Com frequência se ouve dizer que a maior alegria da vida é o nascimento duma criança. É algo de extraordinário, que muda tudo, desencadeia energias inesperadas e faz ultrapassar fadigas, incómodos e noites sem dormir, porque traz uma grande felicidade na posse da qual nada parece pesar. Assim é o Natal: o nascimento de Jesus é a novidade que nos permite renascer dentro, cada ano, encontrando n’Ele força para enfrentar todas as provações. Sim, porque Jesus nasce para nós: para mim, para ti, para todos e cada um de nós. A preposição «para» reaparece várias vezes nesta noite santa: «um menino nasceu para nós», profetizou Isaías; «hoje nasceu para nós o Salvador», repetimos no Salmo Responsorial; Jesus «entregou-Se por nós» (Tit 2, 14), proclamou São Paulo; e, no Evangelho, o anjo anunciou «hoje nasceu para vós um Salvador» (Lc 2, 11). Para mim, para vós…
Mas, esta locução «para nós» que nos quer dizer? Que o Filho de Deus, o Bendito por natureza, vem fazer-nos filhos benditos por graça. Sim, Deus vem ao mundo como filho para nos tornar filhos de Deus. Que dom maravilhoso! Hoje Deus deixa-nos maravilhados, ao dizer a cada um de nós: «Tu és uma maravilha». Irmã, irmão, não desanimes! Estás tentado a sentir-te como um erro? Deus diz-te: «Não é verdade! És meu filho». Tens a sensação de não estar à altura, temor de ser inapto, medo de não sair do túnel da provação? Deus diz-te: «Coragem! Estou contigo». Não to diz com palavras, mas fazendo-Se filho como tu e por ti, para te lembrar o ponto de partida de cada renascimento teu: reconhecer-te filho de Deus, filha de Deus. Este é o ponto de partida de qualquer renascimento. Este é o coração indestrutível da nossa esperança, o núcleo incandescente que sustenta a existência: por baixo das nossas qualidades e defeitos, mais forte do que as feridas e fracassos do passado, os temores e ansiedades face ao futuro, está esta verdade: somos filhos amados. E o amor de Deus por nós não depende nem dependerá jamais de nós: é amor gratuito. Esta noite não encontra outra explicação, senão na graça. Tudo é graça. O dom é gratuito, sem mérito algum da nossa parte, pura graça. Esta noite «manifestou-se – disse-nos São Paulo – a graça de Deus» (Tit 2, 11). Nada é mais precioso!
Um filho nos foi dado. O Pai não nos deu uma coisa qualquer, mas o próprio Filho unigénito, que é toda a sua alegria. Todavia, ao considerarmos a ingratidão do homem para com Deus e a injustiça feita a tantos dos nossos irmãos, surge uma dúvida: o Senhor terá feito bem em dar-nos tanto? E fará bem em confiar ainda em nós? Não estará Ele a sobrestimar-nos? Sim, sobrestima-nos; e fá-lo porque nos ama a preço da sua vida. Não consegue deixar de nos amar. É feito assim, tão diferente de nós. Sempre nos ama, e com uma amizade maior de quanta possamos ter a nós mesmos. É o seu segredo para entrar no nosso coração. Deus sabe que a única maneira de nos salvar, de nos curar por dentro, é amar-nos. Não há outra maneira! Sabe que só melhoramos acolhendo o seu amor incansável, que não muda, mas muda-nos a nós. Só o amor de Jesus transforma a vida, cura as feridas mais profundas, livra do círculo vicioso insatisfação, irritação e lamento.
Um filho nos foi dado. Na pobre manjedoura dum lúgubre estábulo, está precisamente o Filho de Deus. E aqui levanta-se outra questão: porque veio Ele à luz durante a noite, sem um alojamento digno, na pobreza e enjeitado, quando merecia nascer como o maior rei no mais lindo dos palácios? Porquê? Para nos fazer compreender até onde chega o seu amor pela nossa condição humana: até tocar com o seu amor concreto a nossa pior miséria. O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que todo o descartado é filho de Deus. Veio ao mundo como vem ao mundo uma criança débil e frágil, para podermos acolher com ternura as nossas fraquezas. E para nos fazer descobrir uma coisa importante: como em Belém, também connosco Deus gosta de fazer grandes coisas através das nossas pobrezas. Colocou toda a nossa salvação na manjedoura dum estábulo, sem temer as nossas pobrezas. Deixemos que a sua misericórdia transforme as nossas misérias!
Eis o que quer dizer um filho nasceu para nós. Mas há ainda um «para» que o anjo disse aos pastores: «Isto servirá de sinal para vós: encontrareis um menino (…) deitado numa manjedoura» (Lc 2, 12). Este sinal – o Menino na manjedoura – é também para nós, para nos orientar na vida. Em Belém, que significa «casa do pão», Deus está numa manjedoura, como se nos quisesse lembrar que, para viver, precisamos d’Ele como de pão para a boca. Precisamos de nos deixar permear pelo seu amor gratuito, incansável, concreto. Mas quantas vezes, famintos de divertimento, sucesso e mundanidade, nutrimos a vida com alimentos que não saciam e deixam o vazio dentro! Disto mesmo Se lamentava o Senhor, pela boca do profeta Isaías: enquanto o boi e o jumento conhecem a sua manjedoura, nós, seu povo, não O conhecemos a Ele, fonte da nossa vida (cf. Is 1, 2-3). É verdade: insaciáveis de ter, atiramo-nos para muitas manjedouras vãs, esquecendo-nos da manjedoura de Belém. Esta manjedoura, pobre de tudo mas rica de amor, ensina que o alimento da vida é deixar-se amar por Deus e amar os outros. Dá-nos o exemplo Jesus: Ele, o Verbo de Deus, é infante; não fala, mas oferece a vida. Nós, ao contrário, falamos muito, mas frequentemente somos analfabetos em bondade.
Um filho nos foi dado. Quem tem uma criança pequena, sabe quanto amor e paciência são necessários. É preciso alimentá-la, cuidar dela, limpá-la, ocupar-se da sua fragilidade e das suas necessidades, muitas vezes difíceis de compreender. Um filho faz-nos sentir amados, mas ensina também a amar. Deus nasceu menino para nos impelir a cuidar dos outros. Os seus ternos gemidos fazem-nos compreender como tantos dos nossos caprichos são inúteis. E temos tantos! O seu amor desarmado e desarmante lembra-nos que o tempo de que dispomos não serve para nos lamentarmos, mas para consolar as lágrimas de quem sofre. Deus vem habitar perto de nós, pobre e necessitado, para nos dizer que, servindo aos pobres, amá-Lo-emos a Ele. Desde aquela noite, como escreveu uma poetisa, «a residência de Deus é próxima da minha. O mobiliário é o amor» (E. Dickinson, Poems, XVII).
Um filho nos foi dado. Sois Vós, Jesus, o Filho que me torna filho. Amais-me como sou, não como eu me sonho ser. Bem o sei! Abraçando-Vos, Menino da manjedoura, reabraço a minha vida. Acolhendo-Vos, Pão de vida, também eu quero dar a minha vida. Vós que me salvais, ensinai-me a servir. Vós que não me deixais sozinho, ajudai-me a consolar os vossos irmãos, porque, a partir desta noite – como Vós sabeis – são todos meus irmãos.
Papa Francisco 24.12.2020
Imagem: site do Vaticano
Catequese sobre o Natal
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Nesta catequese, no período que antecede o Natal, gostaria de oferecer alguns pontos de reflexão em preparação para a celebração do Natal. Na Liturgia da Noite ressoará o anúncio do anjo aos pastores: «Não temais, eis que vos anuncio uma Boa Nova que será alegria para todo o povo: hoje nasceu-vos na Cidade de David um Salvador, que é Cristo Senhor. Isto servir-vos-á de sinal, achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura» (Lc 2, 10-12).
Imitando os pastores, também nós caminhamos espiritualmente para Belém, onde Maria deu à luz o Menino num estábulo, «pois - diz São Lucas - não havia para eles lugar na hospedaria» (2, 7). O Natal tornou-se uma festa universal e até quem não acredita sente o encanto deste evento. Contudo, os cristãos sabem que o Natal é um acontecimento decisivo, um fogo eterno que Deus acendeu no mundo, e não pode ser confundido com coisas efémeras. É importante que não seja reduzido a uma celebração meramente sentimental ou consumista. No domingo passado chamei a atenção sobre este problema, evidenciando que o consumismo nos sequestrou o Natal. Não: o Natal não se deve reduzir a festa unicamente sentimental ou consumista, rica de prendas e bons votos, mas pobre de fé cristã, e pobre também de humanidade. Portanto, é necessário refrear uma certa mentalidade mundana, incapaz de compreender o núcleo incandescente da nossa fé, que é o seguinte: «E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, a glória que o Filho unigénito recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14). Este é o núcleo do Natal, aliás: é a verdade do Natal, não há outra.
O Natal convida-nos a refletir, por um lado, sobre a dramaticidade da história, em que homens e mulheres, feridos pelo pecado, procuram incessantemente a verdade, vão em busca de misericórdia e de redenção; e, por outro, sobre a bondade de Deus, que veio ao nosso encontro para nos comunicar a Verdade que salva e para nos tornar participantes da sua amizade e da sua vida. Recebemos este dom de graça, é pura graça, sem o nosso mérito. Há um Santo Padre que diz: “Mas olhai deste lado, do outro, de lá: procurai o mérito e só encontrareis graça”. Tudo é graça, um dom de graça. Recebemos este dom de graça através da simplicidade e da humanidade do Natal, e ele pode remover dos nossos corações e das nossas mentes o pessimismo que hoje se difundiu ainda mais por causa da pandemia. Podemos superar esta sensação de desconcerto inquietador, sem nos deixarmos dominar pelas derrotas e fracassos, na consciência redescoberta de que aquele Menino humilde e pobre, escondido e indefeso, é o próprio Deus, que se fez homem para nós. O Concílio Vaticano II, numa célebre passagem da Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, diz-nos que este acontecimento se refere a cada um de nós: «Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado» (Constituição Pastoral Gaudium et spes, 22). Mas Jesus nasceu há dois mil anos, e diz respeito a mim? – Sim, diz respeito a ti e a mim, a cada um de nós. Jesus é um de nós: Deus, em Jesus, é um de nós.
Esta realidade dá-nos muita alegria e coragem. Deus não nos desprezou, não olhou para nós de longe, não passou ao nosso lado, não sentiu repulsa da nossa miséria, não se vestiu com um corpo aparente, mas assumiu plenamente a nossa natureza e condição humana. Nada excluiu, exceto o pecado: a única coisa que Ele não tem. Toda a humanidade está n’Ele. Ele assumiu tudo o que somos, tal como somos. Isto é essencial para a compreensão da fé cristã. Refletindo sobre o seu caminho de conversão, Santo Agostinho escreve nas suas Confissões: «Ainda não tinha a humildade suficiente para possuir o meu Deus, o humilde Jesus, ainda não conhecia os ensinamentos da sua fraqueza» (Confissões VII, 8). E qual é a fraqueza de Jesus? A “fraqueza” de Jesus é um “ensinamento”! Porque nos revela o amor de Deus. O Natal é a festa do Amor encarnado, do amor nascido por nós em Jesus Cristo. Jesus Cristo é a luz dos homens que resplandece nas trevas, que dá sentido à existência humana e a toda a história.
Queridos irmãos e irmãs, que estas breves reflexões nos ajudem a celebrar o Natal com maior consciência. Mas há outra forma de preparação que quero lembrar, tanto a vós como a mim, e que está ao alcance de todos: meditar um pouco em silêncio diante do presépio. O presépio é uma catequese daquela realidade, do que foi feito naquele ano, naquele dia, que ouvimos no Evangelho. Por este motivo, no ano passado escrevi uma Carta, que nos fará bem reler. Intitula-se “Admirabile signum”, “Sinal admirável”. Na escola de São Francisco de Assis, podemos tornar-nos um pouco crianças, permanecer em contemplação da cena da Natividade, deixando que renasça em nós a admiração da forma “maravilhosa” como Deus quis vir ao mundo. Peçamos a graça da admiração: face a este mistério, a esta realidade tão terna, tão bela, tão próxima dos nossos corações, que o Senhor nos conceda a graça da admiração, para que O encontremos, para que nos aproximemos d'Ele, para que nos aproximemos de todos nós. Isto irá renascer em nós a ternura. Há dias, falando com alguns cientistas, comentava-se a inteligência artificial e os robôs... há robôs programados para tudo e para todos, e isto vai progredindo. E eu disse-lhes: “Mas o que nunca serão capazes de fazer os robôs?” Eles pensaram, deram sugestões, mas no final concordaram num ponto: a ternura. Isto os robôs não serão capazes de fazer. E é isto que Deus nos traz hoje: uma forma maravilhosa pela qual Deus quis vir ao mundo, o que reaviva a ternura em nós, a ternura humana que está próxima daquela de Deus. E hoje temos tanta necessidade de ternura, tanta necessidade de carícias humanas, face a tanta miséria! Se a pandemia nos obrigou a estar mais distantes, Jesus, no presépio, mostra-nos o caminho da ternura para estarmos próximos, para sermos humanos. Sigamos este caminho.
Feliz Natal!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.12.2020
Catequese - 19. A oração de intercessão
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Quem reza nunca deixa o mundo para trás. Se a oração não recolhe as alegrias e tristezas, as esperanças e angústias da humanidade, torna-se uma atividade “decorativa”, uma atitude superficial, teatral, uma atitude intimista. Todos precisamos de interioridade: de nos retirarmos para um espaço e um tempo dedicados ao nosso relacionamento com Deus. Mas isto não significa fugir à realidade. Na oração, Deus “toma-nos, abençoa-nos, e depois reparte-nos e oferece-nos”, pela fome de todos. Cada cristão é chamado a tornar-se, nas mãos de Deus, pão repartido e partilhado. Isto é, uma oração concreta, que não seja uma fuga.
Assim, homens e mulheres de oração procuram a solidão e o silêncio, não para não serem incomodados, mas para ouvir melhor a voz de Deus. Por vezes retiram-se do mundo, na intimidade do seu quarto, como Jesus recomendava (cf. Mt 6, 6), mas onde quer que estejam, mantêm sempre a porta do seu coração aberta: uma porta aberta para aqueles que rezam sem saber que estão a rezar; para aqueles que não rezam minimamente mas trazem dentro de si um grito abafado, uma invocação oculta; para aqueles que cometeram um erro e perderam o rumo... Qualquer pessoa pode bater à porta de um orante e encontrar nele ou nela um coração compassivo, que reza sem excluir ninguém. A oração é o nosso coração e a nossa voz, e faz-se coração e voz de muitas pessoas que não sabem rezar ou não rezam, ou não querem rezar ou estão impossibilitadas de o fazer: somos o coração e a voz destas pessoas, que se elevam até Jesus, ao Pai, somos intercessores. Na solidão quem ora – quer na solidão de muito tempo quer na solidão de meia hora – separa-se de tudo e de todos para encontrar tudo e todos em Deus. Assim o orante reza pelo mundo inteiro, carregando sobre os ombros as suas dores e os seus pecados. Reza por todos e por cada pessoa: é como se ele fosse a “antena” de Deus neste mundo. Em cada pobre que bate à porta, em cada pessoa que perdeu o sentido das coisas, aquele que reza vê o rosto de Cristo.
O Catecismo escreve: «Interceder, pedir a favor de outrem, é próprio, [...] dum coração conforme com a misericórdia de Deus» (n. 2635). Isto é belíssimo. Quando rezamos estamos em sintonia com a misericórdia de Deus: misericórdia em relação aos nossos pecados - que é misericordioso conosco - mas também misericórdia para com quantos pediram para rezar por eles, pelos quais queremos rezar em sintonia com o coração de Deus. Esta é a verdadeira oração. Em sintonia com a misericórdia de Deus, aquele coração misericordioso. «No tempo da Igreja, a intercessão cristã participa na de Cristo: é a expressão da comunhão dos santos» (ibid.). O que significa participar na intercessão de Cristo, quando intercedo por alguém ou rezo por alguém? Porque Cristo diante do Pai é intercessor, reza por nós, e ora mostrando ao Pai as chagas das suas mãos; porque Jesus fisicamente, com o seu corpo está perante o Pai. Jesus é o nosso intercessor, e rezar é fazer um pouco como Jesus: interceder em Jesus junto do Pai, pelos outros. E isto é muito bom.
A oração preocupa-se pelo homem. Simplesmente pelo homem. Aquele que não ama o irmão não reza seriamente. Pode-se dizer: em espírito de ódio não se pode rezar; em espírito de indiferença não se pode rezar. A oração só se dá em espírito de amor. Quem não ama finge que reza, ou pensa que reza, mas não reza, pois falta precisamente o espírito que é o amor. Na Igreja, aquele que conhece a tristeza ou a alegria do outro vai mais a fundo do que aquele que investiga os “sistemas máximos”. É por isso que existe uma experiência do humano em cada oração, porque as pessoas, por muitos erros que possam cometer, nunca devem ser rejeitadas nem descartadas.
Quando um crente, movido pelo Espírito Santo, reza pelos pecadores, não faz seleções, não emite juízos de condenação: reza por todos. E também reza por si. Nesse momento, ele sabe que nem sequer é muito diferente das pessoas por quem reza: sente-se pecador, entre os pecadores, e reza por todos. A lição da parábola do fariseu e do publicano é sempre viva e atual (cf. Lc 18, 9-14): não somos melhores do que qualquer outra pessoa, somos todos irmãos numa afinidade de fragilidade, de sofrimento e de pecado. Portanto, uma oração que podemos dirigir a Deus é esta: Senhor, nenhum vivente é justo na vossa presença (cf. Sl 143, 2) – assim diz o salmo: Senhor, nenhum vivente é justo na vossa presença, nenhum de nós: somos todos pecadores - somos todos devedores que têm contas a ajustar; não há ninguém que seja impecável aos teus olhos. Senhor tem piedade de nós. E com este espírito a oração é fecunda, pois vamos com humildade diante de Deus rezar por todos. Ao contrário, o fariseu rezava de maneira soberba: “Dou-te graças, Senhor, porque não sou como os pecadores; sou justo, faço sempre…”. Esta não é oração: é olhar-se no espelho, para a própria realidade, olhar-se no espelho maquilhado pela soberba.
O mundo avança graças a esta cadeia de orantes que intercedem, e que na sua maioria são desconhecidos... mas não a Deus! Há muitos cristãos desconhecidos que, em tempos de perseguição, puderam repetir as palavras de nosso Senhor: «Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).
O bom pastor permanece fiel mesmo perante a constatação do pecado do próprio povo: o bom pastor continua a ser pai mesmo quando os filhos se afastam e o abandonam. Persevera no serviço de pastor até perante aqueles que o levam a sujar as mãos; não fecha o coração a quem talvez o tenha feito sofrer.
A Igreja, em todos os seus membros, tem a missão de praticar a oração de intercessão, intercede pelos outros. Em particular, é dever de todos aqueles que desempenham um papel de responsabilidade: pais, educadores, ministros ordenados, superiores de comunidades... Tal como Abraão e Moisés, devem por vezes “defender” perante Deus as pessoas que lhes foram confiadas. Na realidade, trata-se de olhar para elas com os olhos e o coração de Deus, com a sua mesma invencível compaixão e ternura. Rezar com ternura pelos outros.
Irmãos e irmãs, somos todos folhas da mesma árvore: cada desprendimento lembra-nos a grande piedade que devemos nutrir, na oração, uns pelos outros. Rezemos uns pelos outros: far-nos-á bem e fará bem a todos. Obrigado!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.12.2020
Catequese - 18. A oração de súplica
Continuemos com as nossas reflexões sobre a oração. A oração cristã é totalmente humana - rezamos como pessoas humanas, como somos - inclui louvor e súplica. Com efeito, quando Jesus ensinou os seus discípulos a rezar, fê-lo com o “Pai-Nosso” para que nos colocássemos com Deus numa relação de confiança filial e lhe fizéssemos todos os nossos pedidos. Imploramos a Deus os dons mais elevados: a santificação do seu nome entre os homens, a vinda do seu senhorio, a realização da sua vontade de bem em relação ao mundo. O Catecismo recorda: «Há uma hierarquia nas petições: primeiro, o Reino; depois, tudo quanto é necessário para o acolher e para cooperar com a sua vinda» (n. 2632). Mas no “Pai-Nosso” rezamos também pelos dons mais simples, pelas dádivas mais comuns, tais como o “pão nosso de cada dia” - que também significa saúde, casa, trabalho, coisas do dia a dia; e que significa inclusive a Eucaristia, necessária para a vida em Cristo - tal como rezamos pelo perdão dos pecados - que é uma coisa diária; precisamos sempre de perdão - e portanto de paz nas nossas relações; e por fim, que nos ajude nas tentações e nos liberte do mal.
Pedir, suplicar. Isto é muito humano! Ouçamos novamente o Catecismo: «É pela oração de petição que traduzimos a consciência da nossa relação com Deus: enquanto criaturas, não somos a nossa origem, nem donos das adversidades, nem somos o nosso fim último; mas também, sendo pecadores, sabemos, como cristãos, que nos afastamos do nosso Pai. A petição é já um regresso a Ele» (n. 2629).
Se alguém se sente mal por ter feito coisas ruins - é um pecador - quando recita o Pai-Nosso, já está a aproximar-se do Senhor. Por vezes podemos acreditar que não precisamos de nada, que nos bastamos nós próprios e que vivemos em completa autossuficiência. Às vezes isto acontece! Mas mais cedo ou mais tarde esta ilusão desaparece. O ser humano é uma invocação, que por vezes se torna um grito, muitas vezes reprimido. A alma assemelha-se a uma terra árida e sedenta, como diz o Salmo (cf. 63, 2). Todos vivemos, num ou noutro momento da nossa existência, o tempo da melancolia ou da solidão. A Bíblia não hesita em mostrar a condição humana marcada pela doença, injustiça, traição de amigos, ou ameaça de inimigos. Por vezes parece que tudo se desmorona, que a vida vivida até agora tem sido em vão. E nestas situações aparentemente sem esperança, só há uma saída: o grito, a oração: «Senhor, ajuda-me!». A oração abre vislumbres de luz na escuridão mais espessa. «Senhor, ajuda-me!». Isto abre o caminho, abre o caminho.
Nós, seres humanos, partilhamos este apelo de ajuda com toda a criação. Não somos os únicos que “oramos” neste imenso universo: cada fragmento da criação traz consigo o desejo de Deus. E São Paulo expressou-o deste modo. Diz assim: «Sabemos que toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente. Não só ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nós mesmos» (Rm 8, 22-23). Em nós ressoa o gemido multiforme das criaturas: das árvores, das rochas, dos animais... Tudo anseia pelo seu cumprimento. Tertuliano escreveu: «Todas as criaturas rezam, os animais e as feras rezam e dobram os joelhos; quando saem dos estábulos ou das tocas, levantam a cabeça para o céu e não permanecem com a boca fechada, os seus gritos ressoam de acordo com os seus hábitos. E também as aves, assim que levantam voo, sobem rumo ao céu e abrem as asas como se fossem mãos em forma de cruz, chilreando algo que se parece com a oração» (De oratione, XXIX). Esta é uma expressão poética para comentar o que diz São Paulo,“que toda a criação geme, reza”. Mas somos os únicos a rezar conscientemente, a saber que nos voltamos para o Pai, e entramos em diálogo com o Pai.
Portanto, não nos devemos escandalizar quando sentimos necessidade de rezar, não nos envergonhemos. E especialmente quando estamos em necessidade, peçamos. Jesus falando de um homem desonesto, que deve prestar contas ao seu senhor, diz o seguinte: “De mendigar, tenho vergonha”. E muitos têm este sentimento: temos vergonha de pedir; temos vergonha de pedir ajuda, de pedir a alguém que nos ajude a alcançar um objetivo, e também temos vergonha de pedir a Deus. Não devemos sentir vergonha de rezar e dizer: “Senhor, preciso disto”, “Senhor, enfrento esta dificuldade”, “Ajuda-me!”. É o grito do coração a Deus que é Pai. E devemos aprender a fazer isto também em tempos felizes; dar graças a Deus por tudo o que nos é concedido, e não considerar nada garantido ou devido: tudo é graça. O Senhor dá-nos sempre, sempre, e tudo é graça, tudo. A graça de Deus. No entanto, não sufoquemos a súplica que surge espontaneamente em nós. A oração de pedir anda de mãos dadas com a aceitação do nosso limite e da nossa criaturalidade. Até se pode não a acreditar em Deus, mas é difícil não acreditar na oração: ela simplesmente existe; apresenta-se-nos como um grito; e todos temos de lidar com esta voz interior que pode permanecer em silêncio durante muito tempo, mas um dia acorda e grita.
Irmãos e irmãs, sabemos que Deus vai responder. Não há nenhum orante no Livro dos Salmos que eleve a sua lamentação e não seja ouvido. Deus responde sempre: hoje, amanhã, mas Ele responde sempre, de um modo ou de outro. Ele responde sempre. A Bíblia repete-o inúmeras vezes: Deus ouve o grito de quem o invoca. Até os nossos pedidos hesitantes, que permanecem no fundo do coração, que também temos vergonha de expressar, o Pai ouve-os e quer conceder-nos o Espírito Santo, que anima cada oração e transforma tudo. É uma questão de paciência, sempre, suportar a espera. Agora estamos no tempo do Advento, um tempo típico de espera do Natal. Estamos à espera. Vê-se bem isto. Mas também toda a nossa vida está à espera. E a oração está sempre à espera, porque sabemos que o Senhor vai responder. Até a morte treme quando um cristão reza, pois sabe que cada pessoa que reza tem um aliado mais forte do que ela: o Senhor Ressuscitado. A morte já foi derrotada em Cristo, e chegará o dia em que tudo será definitivo, e ela não desafiará mais a nossa vida nem a nossa felicidade.
Aprendamos a estar à espera do Senhor. O Senhor vem visitar-nos, não só nestas grandes festas - Natal, Páscoa - mas o Senhor visita-nos todos os dias na intimidade do nosso coração, se estivermos à espera. E muitas vezes não percebemos que o Senhor está próximo, que Ele bate à nossa porta e deixamo-lo passar. “Tenho medo de Deus quando passa; tenho medo que Ele passe e eu não repare”, dizia Santo Agostinho. E o Senhor passa, o Senhor vem, o Senhor bate à porta. Mas se os vossos ouvidos estiverem cheios de outros ruídos, não ouvirão o chamamento do Senhor.
Irmãos e irmãs, permanecer à espera: nisto consiste a oração!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.12.2020
Catequese - 17. A bênção
Hoje refletimos sobre uma dimensão essencial da oração: a bênção. Continuemos as reflexões sobre a oração. Nas narrações da criação (cf. Gn 1-2) Deus abençoa continuamente a vida, sempre. Abençoa os animais (1, 22), abençoa o homem e a mulher (1, 28), e no final abençoa o sábado, dia de descanso e de fruição de toda a criação (2, 3). É Deus quem abençoa. Nas primeiras páginas da Bíblia, é uma repetição contínua de bênçãos. Deus abençoa, mas também os homens abençoam, e depressa descobre-se que a bênção possui uma força especial, que acompanha o destinatário ao longo da vida e dispõe o coração humano a deixar-se mudar por Deus (Conc. Ecum. Vat. II, Const. Sacrosanctum concilium, 61).
Portanto, no início do mundo há Deus que “bendiz”, abençoa, bendiz. Ele vê que cada obra das suas mãos é boa e bela, e quando chega ao homem e se cumpre a criação, Ele reconhece que é «muito boa» (Gn 1, 31). Pouco tempo depois, aquela beleza que Deus imprimiu na sua obra será alterada e o ser humano tornar-se-á uma criatura degenerada, capaz de difundir o mal e a morte no mundo; mas jamais nada poderá apagar a primeira marca de Deus, uma marca de bondade que Deus colocou no mundo, na natureza humana, em todos nós: a capacidade de abençoar e o facto de sermos abençoados. Deus não errou com a criação, nem com a criação do homem. A esperança do mundo reside completamente na bênção de Deus: Ele continua a amar-nos, Ele primeiro, como diz o poeta Péguy, (Le porche du mystère de la deuxième vertu, 1ª ed. 1911. Ed. Port., Os portais do mistério da segunda virtude, Edições Paulinas, Portugal [2014]) continua a esperar o nosso bem.
A grande bênção de Deus é Jesus Cristo, é o grande dom de Deus, o seu Filho. É uma bênção para toda a humanidade, é uma bênção que nos salvou a todos. Ele é a Palavra eterna com a qual o Pai nos abençoou, «quando éramos ainda pecadores» (Rm 5, 8) diz São Paulo: Palavra que se fez carne e foi oferecida por nós na cruz.
São Paulo proclama com comoção o desígnio de amor de Deus e diz assim: «Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do céu nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo e nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante dos seus olhos. No seu amor predestinou-nos para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua livre vontade, para fazer resplandecer a sua maravilhosa graça, que nos foi concedida por Ele no Amado» (Ef 1, 3-6). Não há pecado que possa cancelar completamente a imagem de Cristo presente em cada um de nós. Nenhum pecado pode cancelar aquela imagem que Deus nos concedeu. A imagem de Cristo. Pode desfigurá-la, mas não a pode subtrair à misericórdia de Deus. Um pecador pode permanecer nos seus erros por muito tempo, mas Deus é paciente até ao fim, esperando que no final aquele coração se abra e mude. Deus é como um bom pai e como uma boa mãe, também Ele é uma boa mãe: nunca deixam de amar o seu filho, por mais que ele possa errar, sempre. Faz-me lembrar as muitas vezes que vi pessoas na fila para entrar na prisão. Tantas mães que esperam na fila para entrar e ver o seu filho na prisão: não deixam de amar o seu filho e sabem que as pessoas que passam no autocarro pensam “Ah, esta é a mãe do prisioneiro”. Contudo, não sentem vergonha, ou melhor, sentem vergonha, mas ficam ali, pois o filho é mais importante do que a vergonha. Portanto, somos mais importantes para Deus do que todos os pecados que podemos cometer, porque Ele é pai, Ele é mãe, Ele é puro amor, Ele abençoou-nos para sempre. E Ele nunca deixará de nos abençoar.
Uma forte experiência é ler estes textos bíblicos de bênção numa prisão, ou numa comunidade de recuperação. Fazer com que as pessoas que permanecem abençoadas apesar dos seus graves erros, sintam que o Pai celeste continua a amá-las e espera que elas finalmente se abram ao bem. Se até os seus parentes mais próximos os abandonaram porque agora são considerados irrecuperáveis, para Deus continuam a ser sempre filhos. Deus não pode cancelar em nós a imagem de filho, cada um de nós é filho, é filha. Às vezes acontecem milagres: homens e mulheres renascem. Porque encontram a bênção que os unge como filhos. Pois a graça de Deus muda a vida: aceita-nos como somos, mas nunca nos deixa como somos.
Pensemos no que Jesus fez com Zaqueu (cf. Lc 19, 1-10), por exemplo. Todos viam nele o mal; ao contrário, Jesus vê nele um vislumbre de bem, e dali, da sua curiosidade em ver Jesus, faz passar a misericórdia que salva. Assim, mudou primeiro o coração e depois a vida de Zaqueu. Nas pessoas menosprezadas e rejeitadas, Jesus via a bênção indelével do Pai. Zaqueu é um pecador público, ele praticou muitas ações más, mas Jesus via aquele sinal indelével da bênção do Pai e por isso teve compaixão. Aquela frase que se repete tanto no Evangelho, “teve compaixão”, e aquela compaixão leva Jesus a ajudá-lo e a mudar o seu coração. Mais ainda, chegou a identificar-se com cada pessoa em necessidade (cf. Mt 25, 31-46). No trecho do “protocolo” final sobre o qual seremos todos julgados, Mateus 25, Jesus diz: “Tive fome, estava nu, estava na prisão, estava no hospital, estava ali...”.
A Deus que abençoa, nós também respondemos abençoando: - Deus ensinou-nos a abençoar e nós devemos abençoar - é a oração de louvor, de adoração, de ação de graças. O Catecismo escreve: «A oração de bênção é a resposta do homem aos dons de Deus: uma vez que Deus abençoa, o coração do homem pode responder, bendizendo Aquele que é a fonte de toda a bênção» (n. 2626). A oração é alegria e gratidão. Deus não esperou que nos convertêssemos para começar a amar-nos, mas fê-lo muito antes, quando ainda estávamos no pecado.
Não podemos só abençoar este Deus que nos abençoa, devemos abençoar tudo n'Ele, todo o povo, abençoar Deus e abençoar os irmãos, abençoar o mundo: esta é a raiz da mansidão cristã, a capacidade de se sentir abençoado e a capacidade de abençoar. Se todos fizéssemos isto, certamente não haveria guerras. Este mundo precisa de bênção e nós podemos dar a bênção e receber a bênção. O Pai ama-nos. E tudo o que nos resta é a alegria de o abençoar e a alegria de lhe agradecer, e de aprender com Ele a não amaldiçoar, mas a abençoar. E aqui apenas uma palavra para as pessoas que estão habituadas a amaldiçoar, as pessoas que têm sempre na boca, até no coração, uma palavra negativa, uma maldição. Cada um de nós pode pensar: tenho o hábito de amaldiçoar desta maneira? E peçamos ao Senhor a graça de mudar este hábito porque temos um coração abençoado e de um coração abençoado a maldição não pode sair. Que o Senhor nos ensine a nunca amaldiçoar, mas a abençoar.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.12.2020
Catequese - 16. A oração da Igreja nascente
Os primeiros passos da Igreja no mundo foram cadenciados pela oração. Os escritos apostólicos e a grande narração dos Atos dos Apóstolos restituem-nos a imagem de uma Igreja a caminho, de uma Igreja ativa, mas que encontra nas reuniões de oração a base e o ímpeto para a ação missionária. A imagem da Comunidade primitiva de Jerusalém é um ponto de referência para todas as outras experiências cristãs. No Livro dos Atos, Lucas escreve: «Eles perseveravam na doutrina dos apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações» (2, 42). A comunidade persevera na oração.
Aqui encontramos quatro caraterísticas essenciais da vida eclesial: primeira, a escuta do ensinamento dos apóstolos; segunda, a salvaguarda da comunhão recíproca; terceira, a fração do pão; e quarta, a oração. Elas lembram-nos que a existência da Igreja tem sentido, se permanecer firmemente unida a Cristo, isto é, na comunidade, na sua Palavra, na Eucaristia e na oração. É o modo de nos unirmos a Cristo. A pregação e a catequese dão testemunho das palavras e dos gestos do Mestre; a busca constante da comunhão fraterna preserva dos egoísmos e dos particularismos; a fração do pão realiza o sacramento da presença de Jesus no meio de nós: Ele nunca estará ausente, na Eucaristia é precisamente Ele, Ele vive e caminha conosco. E por fim, a oração, que é o espaço do diálogo com o Pai, através de Cristo no Espírito Santo.
Na Igreja, tudo o que cresce fora destas “coordenadas” está desprovido de fundamento. Para discernir uma situação devemos perguntar-nos como, nesta situação, existem estas quatro coordenadas: a pregação, a busca constante da comunhão fraterna - a caridade - a fração do pão - ou seja, a vida eucarística - e a oração. Cada situação deve ser avaliada à luz destas quatro coordenadas. O que não entrar nestas coordenadas está desprovido de eclesialidade, não é eclesial. É Deus quem faz a Igreja, não o clamor das obras. A Igreja não é um mercado; a Igreja não é um grupo de empresários que vão em frente com este novo empreendimento. A Igreja é obra do Espírito Santo, que Jesus nos enviou para nos congregar. A Igreja é precisamente a obra do Espírito na comunidade cristã, na vida comunitária, na Eucaristia, na oração, sempre. E tudo o que cresce fora destas coordenadas está sem fundamento, é como uma casa construída sobre a areia (cf. Mt 7, 24-27). É Deus quem faz a Igreja, não o clamor das obras. É a palavra de Jesus que enche os nossos esforços de significado. É na humildade que se constrói o futuro do mundo.
Às vezes, sinto grande tristeza quando vejo alguma comunidade que, com boa vontade, comete um erro porque pensa em fazer a Igreja com reuniões, como se fosse um partido político: a maioria, a minoria, o que pensa este, ele, o outro... “É como um Sínodo, um caminho sinodal que devemos percorrer”. Pergunto-me: onde está o Espírito Santo? Onde está a oração? Onde está o amor comunitário? Onde está a Eucaristia? Sem estas quatro coordenadas, a Igreja torna-se uma sociedade humana, um partido político - maioritário, minoritário - as mudanças são feitas como se fosse uma empresa, pela maioria ou minoria... Mas não há Espírito Santo. E a presença do Espírito Santo é garantida precisamente por estas quatro coordenadas. Para avaliar uma situação, se é eclesial ou não, perguntemo-nos se existem estas quatro coordenadas: a vida comunitária, a oração, a Eucaristia... [a pregação], como se desenvolve a vida com estas quatro coordenadas. Se faltar isto, faltará o Espírito, e se faltar o Espírito, seremos uma bonita associação humanitária, de beneficência, muito bem, até um partido, digamos assim, eclesial, mas não há Igreja. E é por isso que a Igreja não pode crescer através destas coisas: não cresce por proselitismo, como qualquer empresa, cresce por atração. E quem move a atração? O Espírito Santo. Nunca esqueçamos esta expressão de Bento XVI: “A Igreja não cresce por proselitismo, cresce por atração”. Se faltar o Espírito Santo, que atrai para Jesus, ali não haverá Igreja alguma. Bem, haverá um bom clube de amigos, com boas intenções, mas não haverá Igreja, não haverá sinodalidade.
Lendo os Atos dos Apóstolos, descobrimos que o poderoso motor da evangelização são as reuniões de oração, onde aqueles que participam experimentam diretamente a presença de Jesus e são tocados pelo Espírito. Os membros da primeira comunidade - mas isto é sempre verdade, também para nós, hoje - compreendem que a história do encontro com Jesus não parou no momento da Ascensão, mas continua na sua vida. Narrando o que o Senhor disse e fez - a escuta da Palavra - rezando para entrar em comunhão com Ele, tudo se torna vivo. A oração infunde luz e calor: o dom do Espírito faz nascer neles o fervor.
A este respeito, o Catecismo tem uma expressão muito densa. Diz assim: «O Espírito Santo [...] recorda Cristo à sua Igreja orante, também a conduz para a verdade integral e suscita formulações novas que exprimirão o insondável mistério de Cristo operante na vida, sacramentos e missão da Igreja» (n. 2625). Eis a obra do Espírito na Igreja: recordar Jesus. O próprio Jesus disse-o: Ele ensinar-vos-á e recordar-vos-á. A missão consiste em recordar Jesus, mas não como exercício mnemónico. Percorrendo os caminhos da missão, os cristãos recordam Jesus quando o tornam novamente presente; e dele, do seu Espírito, recebem o “impulso” para ir, proclamar e servir. Na oração, o cristão mergulha no mistério de Deus que ama cada homem, aquele Deus que deseja que o Evangelho seja pregado a todos. Deus é Deus para todos, e em Jesus todos os muros de separação foram definitivamente abatidos: como diz São Paulo, Ele é a nossa paz, ou seja, «Ele, que de dois povos fez um só» (Ef 2, 14). Jesus realizou a unidade.
Assim, a vida da Igreja primitiva é ritmada por uma sucessão contínua de celebrações, convocações, tempos de oração quer comunitária quer pessoal. E é o Espírito que dá força aos pregadores que se põem a caminho, e que por amor a Jesus sulcam os mares e enfrentam perigos, submetendo-se a humilhações.
Deus doa amor, Deus pede amor. Esta é a raiz mística de toda a vida crente. Os primeiros cristãos em oração, mas também nós que viemos muitos séculos mais tarde, todos vivemos a mesma experiência. O Espírito anima tudo. E qualquer cristão que não tiver medo de dedicar tempo à oração, pode fazer próprias as palavras do apóstolo Paulo: «A minha vida presente, na carne, vivo-a na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim» (Gl 2, 20). A oração torna-nos conscientes disto. Só no silêncio da adoração experimentamos toda a verdade destas palavras. Temos que retomar o sentido da adoração. Adorar, adorar Deus, adorar Jesus, adorar o Espírito. O Pai, o Filho e o Espírito: adorar. Em silêncio! A prece da adoração é a oração que nos faz reconhecer Deus como início e fim de toda a história. E esta oração é o fogo vivo do Espírito que dá força ao testemunho e à missão. Obrigado!
Papa Francisco
Imagem: site do Vaticano
Catequese na audiência geral 25.11.2020
Catequese - 15. A Virgem Maria, mulher orante
No nosso caminho de catequeses sobre a oração, hoje encontramos a Virgem Maria como Mulher orante. Nossa Senhora rezava. Quando o mundo ainda não a conhece, quando é uma simples donzela, noiva de um homem da casa de David, Maria reza. Podemos imaginar a jovem de Nazaré, recolhida em silêncio, em diálogo contínuo com Deus, que em breve lhe teria confiado a sua missão. Ela já é cheia de graça e imaculada, desde a concepção, mas ainda nada sabe sobre a sua vocação surpreendente e extraordinária, e sobre o mar tempestuoso que terá de sulcar. Uma coisa é certa: Maria pertence ao grande exército dos humildes de coração, que os historiadores oficiais não incluem nos seus livros, mas com quem Deus preparou a vinda do seu Filho.
Maria não governa autonomamente a sua vida: espera que Deus tome as rédeas do seu caminho e a guie para onde Ele quer. É dócil, e com esta sua disponibilidade predispõe os grandes acontecimentos que envolvem Deus no mundo. O Catecismo recorda-nos a sua presença constante e atenciosa no desígnio benévolo do Pai e ao longo da vida de Jesus (cf. CIC, 2617-2618).
Maria encontra-se em oração, quando o arcanjo Gabriel lhe vai levar o anúncio a Nazaré. O seu “Eis-me!”, pequeno e imenso, que naquele momento faz saltar de alegria toda a criação, na história da salvação tinha sido precedido por muitos outros “eis-me!”, por muitas obediências confiantes, por tantas disponibilidades à vontade de Deus. Não há melhor maneira de rezar do que colocar-se, como Maria, em atitude de abertura, de coração aberto a Deus: “Senhor, o que Tu quiseres, quando Tu quiseres e como Tu quiseres!”. Ou seja, o coração aberto à vontade de Deus. E Deus responde sempre. Quantos fiéis vivem assim a sua oração! Quem é mais humilde de coração, reza assim: digamos com humildade essencial; com humildade simples: “Senhor, o que Tu quiseres, quando Tu quiseres e como Tu quiseres!”. Reza assim, sem se zangar porque os dias estão cheios de problemas, mas indo ao encontro da realidade e consciente de que é no amor humilde, no amor oferecido em cada situação, que nos tornamos instrumentos da graça de Deus. Senhor, o que Tu quiseres, quando Tu quiseres e como Tu quiseres! Uma oração simples, mas que consiste em pôr a nossa vida nas mãos do Senhor: que Ele nos guie! Todos nós podemos orar desta forma, quase sem palavras.
A oração sabe acalmar a inquietação: mas nós estamos inquietos, queremos sempre as coisas antes de as pedirmos, e queremo-las imediatamente. Esta inquietação fere-nos, e a oração sabe acalmar a inquietação, sabe transformá-la em disponibilidade. Quando estou inquieto, rezo e a oração abre o meu coração, tornando-me disponível à vontade de Deus. Nos poucos instantes da Anunciação, a Virgem Maria soube rejeitar o medo, embora tenha previsto que o seu “sim” lhe teria causado provações muito duras. Se na oração compreendermos que cada dia concedido por Deus é uma chamada, então dilataremos o coração e acolheremos tudo. Aprende-se a dizer: “O que quiseres, Senhor. Promete-me apenas que estarás presente em cada passo do meu caminho”. Isto é importante: pedir ao Senhor a sua presença em cada passo do nosso caminho: que não nos deixe sozinhos, que não nos deixe cair em tentação, que não nos abandone nos momentos difíceis. Conclui-se assim o Pai-Nosso é assim: a graça que o próprio Jesus nos ensinou a pedir ao Senhor.
Com a oração, Maria acompanha toda a vida de Jesus, até à morte e ressurreição; e no final continua, e acompanha os primeiros passos da Igreja nascente (cf. At 1, 14). Maria reza com os discípulos que atravessaram o escândalo da Cruz. Reza com Pedro, que sucumbiu ao medo e chorou de remorso. Maria está ali, com os discípulos, no meio dos homens e das mulheres que o seu Filho chamou para formar a sua Comunidade. Maria não age como sacerdote entre eles, não! É a Mãe de Jesus que reza com eles, em comunidade, como um membro da comunidade. Reza com eles e por eles. E, mais uma vez, a sua oração precede o futuro que está prestes a cumprir-se: por obra do Espírito Santo, tornou-se Mãe de Deus, e por obra do Espírito Santo, torna-se Mãe da Igreja. Orando com a Igreja nascente, torna-se Mãe da Igreja, acompanha os discípulos nos primeiros passos da Igreja, em oração, à espera do Espírito Santo. Em silêncio, sempre em silêncio! A prece de Maria é silenciosa. O Evangelho só nos narra uma oração de Maria: em Caná, quando pede ao seu Filho, por aquelas pobres pessoas, que estão prestes a fazer má figura na festa. Mas, imaginemos: oferecer uma festa de casamento e terminá-la com leite, porque não havia vinho! Mas que vergonha! E Ela suplica e pede ao seu filho que resolva aquele problema. A presença de Maria é por si só oração, e a sua presença entre os discípulos no Cenáculo, à espera do Espírito Santo, é orante. Assim, Maria dá à luz a Igreja, é Mãe da Igreja. O Catecismo explica: «Na fé da sua humilde serva, o Dom de Deus - ou seja, o Espírito Santo - encontra o acolhimento que Ele esperava desde o princípio dos tempos» (Catecismo, n. 2617).
Na Virgem Maria, a natural intuição feminina é exaltada pela sua união singular com Deus na oração. Por este motivo, lendo o Evangelho, observamos que às vezes Ela parece desaparecer, para depois reaparecer nos momentos cruciais: Maria está aberta à voz de Deus que guia o seu coração, que orienta os seus passos onde a sua presença é necessária. Presença silenciosa de mãe e de discípula. Maria está presente porque é Mãe, mas está presente também porque é a primeira discípula, aquela que melhor aprendeu as coisas de Jesus. Maria nunca diz: “Vinde, resolverei os problemas”. Mas diz: “Fazei o que Ele vos disser”, indicando sempre com o dedo Jesus. Esta atitude é típica do discípulo, e ela é a primeira discípula: reza como Mãe, ora como discípula.
«Maria conservava todas estas palavras, ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Assim o evangelista Lucas retrata a Mãe do Senhor no Evangelho da infância. Tudo o que acontece ao seu redor acaba por ter um reflexo no fundo do seu coração: tanto os dias cheios de alegria, como os momentos mais sombrios, quando até Ela tem dificuldade de compreender por que caminhos deve passar a Redenção. Tudo acaba no seu coração, para poder ser joeirado mediante a oração e por ela transfigurado. Quer sejam as dádivas dos Magos, quer a fuga para o Egito, até à tremenda sexta-feira da paixão: a Mãe conserva tudo, apresentando-o a Deus no seu diálogo com Ele. Alguém comparou o coração de Maria com uma pérola de esplendor inigualável, formada e limada pela aceitação paciente da vontade de Deus, através dos mistérios de Jesus meditados na oração. Que bom se também nós pudéssemos assemelhar-nos um pouco à nossa Mãe! Com o coração aberto à Palavra de Deus, com o coração silencioso, com o coração obediente, com o coração que sabe receber a Palavra de Deus, deixando-a crescer com uma semente do bem da Igreja.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 18.11.2020
imagem: Henry Ossawa Tanner (Anunciação)
Catequese - 14. A oração perseverante
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Continuemos a catequese sobre a oração. Alguém me disse: “Fala demasiado de oração. Não é necessário”. Sim, é necessário. Porque, se não rezarmos, não teremos forças para ir em frente na vida. A oração é como o oxigénio da vida. A oração é atrair sobre nós a presença do Espírito Santo que nos leva sempre em frente. É por isso que falo muito sobre a oração.
Jesus deu exemplo de uma oração contínua, praticada com perseverança. O diálogo constante com o Pai, no silêncio e no recolhimento, é o ponto fulcral de toda a sua missão. Os Evangelhos apresentam-nos também as suas exortações aos discípulos, para que rezem com insistência, sem se cansar. O Catecismo recorda as três parábolas contidas no Evangelho de Lucas que sublinham esta caraterística da oração de Jesus (cf. CIC, 2613).
A oração deve ser antes de mais tenaz: como o personagem da parábola que, devendo um hóspede que chegou de repente, no meio da noite, vai bater à porta de um amigo e pede-lhe pão. O amigo responde “não!”, porque já está na cama, mas ele insiste, e insiste a ponto de o obrigar a levantar-se e a dar-lhe pão (cf. Lc 11, 5-8). Um pedido tenaz. Mas Deus é mais paciente do que nós, e quem bate à porta do seu coração com fé e perseverança não fica desiludido. Deus responde sempre. Sempre. O nosso Pai sabe bem do que precisamos; a insistência não serve para o informar ou convencer, mas para alimentar o desejo e a expetativa em nós.
A segunda parábola é a da viúva que se dirige ao juiz para que a ajude a obter justiça. Este juiz é corrupto, é um homem sem escrúpulos, mas no final, exasperado pela insistência da viúva, decide contentá-la (cf. Lc 18, 1-8). E pensa: “Mas, é melhor que lhe resolva o problema e me livre dela, sem que venha continuamente lamentar-se diante de mim”. Esta parábola faz-nos compreender que a fé não é o impulso de um momento, mas uma disposição corajosa para invocar Deus, até para “discutir” com Ele, sem se resignar ao mal e à injustiça.
A terceira parábola apresenta um fariseu e um publicano que vão ao Templo para rezar. O primeiro dirige-se a Deus gabando-se dos próprios méritos; o outro sente-se indigno até de entrar no santuário. Contudo, Deus não ouve a oração do primeiro, isto é, dos soberbos, mas atende a dos humildes (cf. Lc 18, 9-14). Não há verdadeira oração sem espírito de humildade. É precisamente a humildade que nos leva a pedir na oração.
O ensinamento do Evangelho é claro: é preciso rezar sempre, até quando tudo parece vão, quando Deus nos parece surdo e mudo, e que perdemos tempo. Mesmo que o céu se ofusque, o cristão não deixa de rezar. A sua oração anda de mãos dadas com a fé. E a fé, em muitos dias da nossa vida, pode parecer uma ilusão, uma labuta estéril. Há momentos escuros na nossa vida e nesses momentos a fé parece uma ilusão. Mas praticar a oração também significa aceitar esta dificuldade. “Pai, vou rezar e não ouço nada... Sinto-me assim, com um coração seco, com um coração árido”. Mas devemos continuar, com a dificuldade dos maus momentos, dos momentos nos quais não sentimos nada. Muitos santos e santas viveram a noite da fé e o silêncio de Deus - quando batemos à porta e Deus não responde - e estes santos foram perseverantes.
Nestas noites de fé, quem reza nunca está sozinho. Na verdade, Jesus não é apenas testemunha e mestre de oração, é muito mais. Ele acolhe-nos na sua oração, para podermos rezar n'Ele e através d'Ele. E isto é obra do Espírito Santo. É por este motivo que o Evangelho nos convida a rezar ao Pai em nome de Jesus. São João relata estas palavras do Senhor: «E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, vo-lo darei, para que o Pai seja glorificado no Filho» (14, 13). E o Catecismo explica que «a certeza de sermos atendidos nas nossas petições baseia-se na oração de Jesus» (n. 2614). Ela dá as asas que a oração do homem sempre desejou possuir.
Como deixar de recordar aqui as palavras do Salmo 90-91, carregadas de confiança, que brotam de um coração que espera tudo de Deus: «Ele cobrir-te-á com as suas plumas, sob as suas asas encontrarás refúgio. A sua fidelidade ser-te-á um escudo de proteção. Tu não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa à luz do dia, nem a peste que se propaga nas trevas, nem o mal que grassa ao meio-dia» (vv. 4-6). É em Cristo que esta maravilhosa oração se cumpre, é n'Ele que encontra a sua verdade plena. Sem Jesus, as nossas orações correriam o risco de se reduzir a esforços humanos, na maioria das vezes destinados ao fracasso. Mas Ele tomou sobre si cada grito, cada gemido, cada júbilo, cada súplica... cada prece humana. E não esqueçamos o Espírito Santo que ora em nós; é Ele que nos leva a orar, leva-nos a Jesus. É o dom que o Pai e o Filho nos deram para prosseguirmos ao encontro com Deus. E o Espírito Santo, quando oramos, é o Espírito Santo que reza nos nossos corações.
Cristo é tudo para nós, inclusive na nossa vida de oração. Santo Agostinho dizia-o com uma expressão iluminante, que também encontramos no Catecismo: Jesus, «sendo o nosso Sacerdote, ora por nós; sendo a nossa Cabeça, ora em nós; e sendo o nosso Deus, a Ele oramos. Reconheçamos, pois, n'Ele a nossa voz, e a voz d'Ele em nós» (n. 2616). E é por isso que o cristão que reza nada teme, confia-se ao Espírito Santo, que nos foi dado como dom e que reza em nós, suscitando a oração. Que seja o próprio Espírito Santo, Mestre de oração, a ensinar-nos o caminho da oração.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.11.2020
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Catequese - 13. Jesus, mestre da oração
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Infelizmente tivemos de voltar a esta audiência na Biblioteca e isto para nos defendermos do contágio de Covid. Isto também nos ensina que devemos estar muito atentos às prescrições das autoridades, quer as autoridades políticas quer as sanitárias, a fim de nos defendermos desta pandemia. Ofereçamos ao Senhor esta distância entre nós, para o bem de todos, e pensemos, pensemos muito nos doentes, em quantos entram nos hospitais já como descartes, pensemos nos médicos, nos enfermeiros, nas enfermeiras, nos voluntários, nas muitas pessoas que trabalham com os doentes neste momento: arriscam a sua vida mas fazem-no por amor ao próximo, como uma vocação. Rezemos por eles.
Durante a sua vida pública, Jesus recorre constantemente ao poder da oração. Os Evangelhos mostram-no quando se retira em lugares isolados para rezar. Trata-se de observações sóbrias e discretas, que deixam apenas imaginar aqueles diálogos orantes. Contudo, elas testemunham claramente que mesmo em momentos de maior dedicação aos pobres e aos doentes, Jesus nunca negligenciava o seu diálogo íntimo com o Pai. Quanto mais estava imerso nas necessidades do povo, tanto mais sentia a necessidade de descansar na Comunhão trinitária, de voltar para o Pai e para o Espírito.
Portanto, na vida de Jesus existe um segredo, escondido aos olhos humanos, que representa o ponto fulcral de tudo. A oração de Jesus é uma realidade misteriosa, da qual só intuímos algo, mas que permite ler toda a sua missão na justa perspetiva. Naquelas horas solitárias – na madrugada ou durante a noite - Jesus mergulha na sua intimidade com o Pai, ou seja, no Amor do qual toda a alma tem sede. É isto que sobressai dos primeiros dias do seu ministério público.
Num sábado, por exemplo, a cidade de Cafarnaum transformou-se num “hospital de campanha”: ao pôr do sol, levam todos os doentes a Jesus e Ele cura-os. Mas antes do amanhecer, Jesus desaparece: retira-se para um lugar solitário e reza. Simão e os outros procuram-no e quando o encontram dizem-lhe: «Todos te procuram!». O que responde Jesus?: «Vamos às aldeias vizinhas, para que Eu pregue também lá, pois foi para isso que vim» (cf. Mc 1, 35-38). Com frequência Jesus vai além, além na oração com o Pai e além noutras aldeias, noutros horizontes para ir anunciar a outros povos.
A oração é o leme que guia a rota de Jesus. Não é o sucesso, não é o consentimento, não é aquela frase sedutora “todos te procuram”, que ditam as etapas da sua missão. É o modo menos confortável que traça o caminho de Jesus, mas que obedece à inspiração do Pai, que Jesus ouve e acolhe na sua prece solitária.
O Catecismo afirma: «Quando ora, Jesus já nos ensina a orar» (n. 2607). Portanto, a partir do exemplo de Jesus, podemos obter algumas caraterísticas da oração cristã.
Antes de mais, possui um primado: é o primeiro desejo do dia, algo que se pratica ao amanhecer, antes que o mundo desperte. Ela restitui uma alma àquilo que de outra forma ficaria sem respiro. Um dia vivido sem oração corre o risco de se transformar numa experiência aborrecida ou tediosa: tudo o que nos acontece poderia transformar-se para nós num destino mal suportado e cego. Jesus, ao contrário, educa na obediência à realidade e, portanto, à escuta. A oração é, antes de mais nada, escuta e encontro com Deus. Por conseguinte, os problemas da vida quotidiana não se tornam obstáculos, mas apelos do próprio Deus a ouvir e encontrar quantos estão à nossa frente. Assim, as provações da vida transformam-se em ocasiões para crescer na fé e na caridade. O caminho diário, incluindo as dificuldades, adquire a perspetiva de uma “vocação”. A oração tem o poder de transformar em bem o que de outra forma seria uma condenação na vida; a oração tem o poder de abrir um grande horizonte para a mente e de alargar o coração.
Em segundo lugar, a oração é uma arte a praticar com insistência. O próprio Jesus diz-nos: batei, batei, batei à porta. Todos somos capazes de orações episódicas, que nascem da emoção de um momento; mas Jesus educa-nos para outro tipo de oração: aquela que conhece uma disciplina, um exercício e é assumida no âmbito de uma regra de vida. A oração perseverante produz uma transformação progressiva, fortalece em tempos de tribulação, concede a graça de ser amparados por Aquele que nos ama e nos protege sempre.
Outra caraterística da oração de Jesus é a solidão. Quem reza não foge do mundo, mas prefere lugares desertos. Ali, no silêncio, podem surgir muitas vozes que escondemos no íntimo: os desejos mais afastados, as verdades que nos obstinamos a sufocar e assim por diante. E, acima de tudo, Deus fala no silêncio. Cada pessoa precisa de um espaço para si, onde cultivar a sua vida interior, onde as ações têm sentido. Sem vida interior tornamo-nos superficiais, agitados, ansiosos - a ansiedade faz-nos muito mal! Por isso devemos rezar; sem vida interior fugimos da realidade e também fugimos de nós mesmos, somos homens e mulheres sempre em fuga.
Por fim, a oração de Jesus é o lugar onde percebemos que tudo vem de Deus e para Ele volta. Por vezes, nós seres humanos acreditamos que somos senhores de tudo ou, caso contrário, perdemos toda a autoestima, vamos de um lado para o outro. A oração ajuda-nos a encontrar a correta dimensão na relação com Deus, nosso Pai, e com toda a criação. Por fim, a oração de Jesus consiste em entregar-se nas mãos do Pai, como Jesus no jardim das oliveiras, naquela angústia: “Pai se for possível... mas seja feita a tua vontade”. O abandono nas mãos do Pai. É bom quando estamos agitados, um pouco preocupados e o Espírito Santo nos transforma a partir de dentro e nos leva a este abandono nas mãos do Pai: “Pai, seja feita a tua vontade”.
Amados irmãos e irmãs, redescubramos no Evangelho Jesus Cristo como mestre de oração, e coloquemo-nos na sua escola. Garanto-vos que encontraremos a alegria e a paz!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 04.11.2020
imagem: site do Vaticano
Catequese - 11. A oração dos Salmos. 2
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje temos que mudar um pouco o modo de realizar esta audiência devido ao coronavírus. Vós estais distanciados, também protegidos pela máscara e eu estou aqui um pouco afastado e não posso fazer o que faço sempre, aproximar-me de vós, pois cada vez que me aproximo, vós aproximais-vos todos juntos e perde-se a distância e há o perigo de contágio para vós. Lamento fazer isto, mas é para a vossa segurança. Em vez de me aproximar de vós, apertando as mãos e saudando, cumprimentamo-nos de longe, mas sabei que estou perto de vós com o coração. Espero que compreendais por que estou a fazer isto. Depois, enquanto os leitores liam a passagem bíblica, chamou a minha atenção aquele menino ou menina que chorava. E vi a mãe que abraçava e amamentava o bebê e pensei: “É assim que Deus faz conosco, como aquela mãe”. Com quanta ternura segurava o bebê, para o amamentar. Estas são belas imagens. E quando isto acontece na Igreja, quando um bebé chora, sabemos que existe a ternura de uma mãe, como hoje, existe a ternura de uma mãe que é o símbolo da ternura de Deus para conosco. Nunca silenciar uma criança que chora na Igreja, nunca, porque é a voz que atrai a ternura de Deus. Obrigado pelo testemunho.
Hoje completamos a catequese sobre a oração dos Salmos. Antes de mais, notamos que nos Salmos aparece frequentemente uma figura negativa, a do “ímpio”, ou seja, aquele ou aquela que vive como se Deus não existisse. É a pessoa sem qualquer referência ao transcendente, sem freios na sua arrogância, que não teme o julgamento sobre o que pensa e o que faz.
Por esta razão, o Saltério apresenta a oração como a realidade fundamental da vida. A referência ao absoluto e ao transcendente - a que os mestres da ascese denominam “temor sagrado de Deus” - é o que nos torna plenamente humanos, é o limite que nos salva de nós mesmos, impedindo que nos aventuremos nesta vida de modo predatório e voraz. A oração é a salvação do ser humano!
Certamente, existe também uma oração falsa, uma prece feita apenas para sermos admirados pelos outros. Aquele ou aqueles que vão à missa apenas para mostrar que são católicos ou para exibir o último modelo que compraram, ou para fazer uma boa figura social. Esses vão a uma oração falsa. Jesus advertiu fortemente a este respeito (cf. Mt 6, 5-6; Lc 9, 14). Mas quando o verdadeiro espírito de oração é acolhido com sinceridade e entra no coração, então faz-nos contemplar a realidade com o olhar do próprio Deus.
Quando rezamos, tudo adquire “profundidade”. Isto é curioso na oração, talvez comecemos por uma coisa sutil, mas na oração essa coisa adquire espessura, adquire peso, como se Deus a tomasse nas Suas mãos e a transformasse. O pior serviço que pode ser prestado, a Deus e também ao homem, é rezar com tédio, de maneira habitudinária. Rezar como papagaios. Não, reza-se com o coração. A oração é o centro da vida. Se houver oração, o irmão, a irmã, até o inimigo, torna-se importante. Um antigo ditado dos primeiros monges cristãos reza: «Abençoado é o monge que, depois de Deus, considera todos os homens como Deus» (Evágrio Pôntico, Tratado sobre a Oração, n. 123). Quem adora Deus, ama os seus filhos. Quem respeita Deus, respeita os seres humanos.
Por esta razão, a oração não é um calmante para aliviar as ansiedades da vida; ou, contudo, uma prece deste tipo certamente não é cristã. Ao contrário, a oração responsabiliza cada um de nós. Vemos isto claramente no “Pai-Nosso”, que Jesus ensinou aos seus discípulos.
Para aprender este modo de rezar, o Saltério é uma grande escola. Vimos que os Salmos nem sempre usam palavras requintadas e gentis, e muitas vezes têm as cicatrizes da existência. No entanto, todas estas orações foram utilizadas primeiro no Templo de Jerusalém e depois nas sinagogas; até as mais íntimas e pessoais. Assim se expressa o Catecismo da Igreja Católica: «As expressões multiformes da oração dos salmos tomam forma, ao mesmo tempo, na liturgia do templo e no coração do homem» (n. 2588). E deste modo a oração pessoal haure e alimenta-se primeiro daquela do povo de Israel e depois daquela do povo da Igreja.
Inclusive os salmos na primeira pessoa do singular, que confidenciam os pensamentos e os problemas mais íntimos de um indivíduo, são património coletivo, a ponto de serem recitados por todos e para todos. A oração dos cristãos tem este “respiro”, esta “tensão” espiritual que mantém unidos o templo e o mundo. A prece pode começar na penumbra de uma nave, mas depois acaba a sua corrida pelas ruas da cidade. E vice-versa, pode germinar durante os afazeres diários e encontrar o seu cumprimento na liturgia. As portas das igrejas não são barreiras, mas “membranas” permeáveis, disponíveis para acolher o clamor de todos.
O mundo está sempre presente na oração do Saltério. Os Salmos, por exemplo, dão voz à promessa divina de salvação dos mais frágeis: «Por causa da aflição dos humildes e dos gemidos dos pobres, levantar-me-ei - diz o Senhor - para lhes dar a salvação que desejam» (12 [11], 6). Ou alertam para o perigo das riquezas mundanas, porque «o homem que vive na opulência e não reflete é semelhante ao gado que se abate» (48, 21). Ou, ainda, abrem o horizonte ao olhar de Deus sobre a história: «O Senhor desfaz os planos das nações pagãs, reduz a nada os projetos dos povos. Só os desígnios do Senhor permanecem eternamente, os pensamentos do seu coração por todas as gerações» (33, 10-11).
Em síntese, onde está Deus, deve estar também o homem. A Sagrada Escritura é categórica: «Mas amamos, porque Deus nos amou primeiro - Ele está sempre à nossa frente. Ele espera sempre por nós porque nos ama primeiro, ele olha para nós primeiro, ele compreende-nos primeiro. Ele espera sempre por nós - Se alguém disser: “Amo a Deus”, mas odeia o seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê. - Se rezas muitos terços por dia mas depois falas mal de outros, e depois sentes rancor interior, ódio contra o próximo, isto é puro artifício, não é verdadeiro. - De Deus recebemos este mandamento: aquele que amar a Deus, ame também ao seu irmão» (1 Jo 4, 19-21). A Escritura admite o caso de uma pessoa que, mesmo procurando sinceramente a Deus, nunca consegue encontrá-lo; mas afirma também que nunca se pode negar as lágrimas dos pobres, sob pena de não encontrar a Deus. Deus não suporta o “ateísmo” daqueles que negam a imagem divina impressa em cada ser humano. Aquele ateísmo quotidiano: acredito em Deus, mas com os outros mantenho a minha distância e permito-me odiar os outros. Isto é ateísmo prático. Deixar de reconhecer a pessoa humana como imagem de Deus é um sacrilégio, uma abominação, é a pior ofensa que se pode levar ao templo e ao altar.
Estimados irmãos e irmãs, que a oração dos Salmos nos ajude a não cair na tentação da “impiedade”, ou seja, de viver, e talvez até de rezar como se Deus não existisse, como se os pobres não existissem.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 21.10.2020
Catequese - 12. Jesus, homem de oração
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje, nesta audiência, como já fizemos em audiências anteriores, vou ficar aqui. Gostaria muito de descer, para saudar cada um, mas devemos manter a distância, porque se eu descer agora, haverá aglomeração para cumprimentar, e isto é contra os cuidados, as precauções que devemos ter diante desta “senhora” que se chama Covid e que tanto nos prejudica. Por esta razão, perdoai-me se não desço para vos saudar: saudar-vos-ei daqui, mas levo-vos todos no coração. E vós, levai-me no vosso coração e rezai por mim. À distância, podem rezar uns pelos outros; obrigado pela compreensão.
No nosso itinerário de catequeses sobre a oração, depois de termos percorrido o Antigo Testamento, chegamos agora a Jesus. E Jesus rezava. O início da sua missão pública tem lugar com o batismo no rio Jordão. Os Evangelistas concordam em atribuir uma importância fundamental a este episódio. Narram o modo como todo o povo se reuniu em oração, e especificam que esta reunião teve um claro caráter penitencial (cf. Mc 1, 5; Mt 3, 8). O povo procurava João para se fazer batizado para o perdão dos pecados: há um caráter penitencial, de conversão.
Portanto, o primeiro ato público de Jesus é a participação numa oração comum do povo, uma prece do povo que se faz batizar, uma oração penitencial, na qual todos se reconhecem pecadores. Por isso, o Batista gostaria de se lhe opor, dizendo: «Eu é que devo ser batizado por ti. E Tu vens a mim?» (Mt 3, 14). O Batista compreende quem é Jesus. Mas Jesus insiste: o seu é um ato que obedece à vontade do Pai (v. 15), um ato de solidariedade para com a nossa condição humana. Ele reza com os pecadores do povo de Deus. Ponhamos isto na nossa cabeça: Jesus é o Justo, não é um pecador. Mas Ele queria vir até nós, pecadores, e Ele reza conosco, e quando rezamos Ele está conosco a rezar; Ele está conosco porque está no céu a rezar por nós. Jesus reza sempre com o seu povo, reza sempre conosco: sempre. Nunca rezamos sozinhos, rezamos sempre com Jesus. Ele não permanece na margem oposta do rio - “Eu sou justo, vós pecadores” – para marcar a sua diversidade e distância do povo desobediente, mas mergulha os seus pés nas mesmas águas de purificação. Faz-se como um pecador. E esta é a grandeza de Deus que enviou o Seu Filho que se aniquilou a si mesmo e se manifestou como um pecador.
Jesus não é um Deus distante, e não o pode ser. A encarnação revelou-o de forma completa e humanamente impensável. Assim, ao inaugurar a sua missão, Jesus coloca-se à frente de um povo de penitentes, como se estivesse encarregado de abrir uma brecha pela qual todos nós, depois d'Ele, devemos ter a coragem de passar. Mas a via, o caminho, é difícil; mas Ele vai abrindo o caminho. O Catecismo da Igreja Católica explica que esta é a novidade da plenitude dos tempos. Diz: «A oração filial, que o Pai esperava dos seus filhos, vai finalmente ser vivida pelo próprio Filho Único na sua humanidade, com e para os homens» (n. 2599). Jesus reza conosco. Ponhamos isto na cabeça e no coração: Jesus reza conosco.
Portanto, naquele dia, nas margens do rio Jordão, encontra-se toda a humanidade, com os seus anseios de oração não expressos. Há sobretudo o povo dos pecadores: aqueles que pensavam que não podiam ser amados por Deus, quantos não se atreviam a ir além do limiar do templo, aqueles que não rezavam porque não se sentiam dignos. Jesus veio para todos, até para eles e começa precisamente por se unir a eles, à frente deles.
O Evangelho de Lucas destaca sobretudo a atmosfera de oração em que o batismo de Jesus teve lugar: «Tendo sido batizado todo o povo, e no momento em que Jesus se encontrava em oração, depois de ter sido batizado, o céu abriu-se» (3, 21). Orando, Jesus abre a porta do céu, e daquela brecha desce o Espírito Santo. E do alto uma voz proclama a maravilhosa verdade: «Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu enlevo» (v. 22). Esta simples frase contém um tesouro imenso: faz-nos intuir algo do mistério de Jesus e do seu coração, sempre voltado para o Pai. No turbilhão da vida e do mundo que chegará a condená-lo, até nas experiências mais duras e tristes que deverá suportar, inclusive quando experimenta que não tem onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8, 20), até quando o ódio e a perseguição se desencadeiam à sua volta, Jesus nunca está sem o amparo de uma morada: habita eternamente no Pai.
Eis a grandeza única da oração de Jesus: o Espírito Santo apodera-se da sua pessoa e a voz do Pai atesta que Ele é o amado, o Filho em quem se reflete plenamente.
Esta prece de Jesus, que nas margens do rio Jordão é totalmente pessoal - e assim será ao longo da sua vida terrena - no Pentecostes tornar-se-á, pela graça, a oração de todos os batizados em Cristo. Ele próprio obteve este dom para nós e convida-nos a rezar como Ele rezou.
Por esta razão, se numa noite de oração nos sentirmos fracos e vazios, se nos parecer que a vida tem sido completamente inútil, nesse momento devemos implorar que a prece de Jesus se torne também a nossa. “Hoje não posso rezar, não sei o que fazer: não me apetece, sou indigno, indigna”. Neste momento, devemos confiar n'Ele para que reze por nós. Neste momento, Ele está diante do Pai a rezar por nós, é o intercessor; mostra ao Pai as feridas por nós. Tenhamos confiança nisto! Se tivermos confiança, então ouviremos uma voz do céu, mais alta do que a voz que se eleva da nossa ignomínia, e ouviremos esta voz sussurrar palavras de ternura: “Tu és o amado de Deus, tu és filho, tu és a alegria do Pai que está nos céus”. Precisamente para nós, para cada um de nós, ressoa a palavra do Pai: mesmo que fôssemos rejeitados por todos, pecadores da pior espécie. Jesus não desceu às águas do Jordão para si mesmo, mas por todos nós. Foi todo o povo de Deus que se aproximou do Jordão para rezar, para pedir perdão, para fazer o batismo de penitência. E como diz aquele teólogo, aproximaram-se do Jordão “com a alma e os pés nus”. Isso é humildade. Rezar requer humildade. Abriu os céus, como Moisés abriu as águas do mar Vermelho, para que todos nós pudéssemos passar atrás dele. Jesus ofereceu-nos a sua própria oração, que é o seu diálogo de amor com o Pai. Concedeu-no-la como uma semente da Trindade, que quer criar raízes no nosso coração. Acolhamo-la! Acolhamos este dom, o dom da oração. Sempre com Ele. E não nos enganaremos. Obrigado!
Papa Francisco.
Catequese na audiência geral em 28.10.2020
Catequese - 10. A oração dos Salmos. 1
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
À medida que lemos a Bíblia, deparamo-nos continuamente com orações de vários tipos. Mas também encontramos um livro composto apenas de preces, um livro que se tornou pátria, ginásio e casa de incontáveis orantes. Trata-se do Livro dos Salmos. São 150 Salmos para recitar.
Faz parte dos livros sapienciais, porque comunica o “saber rezar” através da experiência do diálogo com Deus. Nos salmos encontramos todos os sentimentos humanos: alegrias, tristezas, dúvidas, esperanças e amarguras que coloram a nossa vida. O Catecismo afirma que cada salmo «é de tal sobriedade que pode, com verdade, ser rezado pelos homens de qualquer condição e de todos os tempos» (CIC, n. 2588). Ao ler e reler os salmos, aprendemos a linguagem da oração. Efetivamente, com o seu Espírito, Deus Pai inspirou-os no coração do rei David e de outros orantes, para ensinar cada homem e cada mulher a louvá-lo, a dar-lhe graças, a suplicá-lo, a invocá-lo na alegria e na tristeza, a narrar as maravilhas das suas obras e da sua Lei. Em síntese, os salmos são a palavra de Deus que nós, humanos, usamos para falar com Ele.
Neste livro não encontramos pessoas etéreas nem abstratas, pessoas que confundem a oração com uma experiência estética ou alienante. Os salmos não são textos compostos de forma teórica, são invocações, muitas vezes dramáticas, que nascem da experiência viva da existência. Para os recitar basta ser quem somos. Não nos devemos esquecer que para rezar bem devemos orar assim como somos, sem nos maquilharmos. Não é preciso maquilhar a alma para rezar. “Senhor, sou assim”, ir diante do Senhor como somos, com as coisas boas e também com as más que ninguém conhece, mas nós, dentro, conhecemos. Nos salmos ouvimos as vozes de orantes de carne e osso, cuja vida, como a de todos, está repleta de problemas, dificuldades e incertezas. O salmista não contesta radicalmente este sofrimento: ele sabe que pertence à vida. Contudo, nos salmos o sofrimento transforma-se em interrogação. Do sofrer ao perguntar.
E entre as muitas perguntas, há uma que permanece suspensa, como um brado incessante que percorre todo o livro de um lado ao outro. Uma pergunta, que repetimos muitas vezes: “Até quando, Senhor? Até quando?”. Cada dor pede libertação, cada lágrima invoca consolação, cada ferida aguarda a cura, cada calúnia, uma sentença de absolvição. “Até quando Senhor tenho que sofrer isto? Ouve-me Senhor!”: quantas vezes rezamos assim com este “até quando?”, Senhor, chega!
Ao fazer constantemente tais perguntas, os salmos ensinam-nos a não nos habituarmos à dor e lembram-nos que a vida não se salva, se não for curada. A existência do homem é um sopro, a sua história é fugaz, mas o orante sabe que é precioso aos olhos de Deus, e por isso tem sentido bradar. Isto é importante. Quando rezamos, fazemo-lo porque sabemos que somos preciosos aos olhos de Deus. É a graça do Espírito Santo que de dentro suscita em nós esta consciência: de ser preciosos aos olhos de Deus. E por isso somos induzidos a rezar.
A oração dos salmos é o testemunho deste grito: um brado múltiplo, porque na vida a dor assume mil formas, e tem o nome de doença, ódio, guerra, perseguição, desconfiança... Até ao supremo “escândalo”, o da morte. A morte aparece no Saltério como o inimigo mais irracional do homem: que crime merece um castigo tão cruel, que envolve a aniquilação e o fim? O orante dos salmos pede a Deus que intervenha onde todos os esforços humanos são vãos. É por isso que a oração, já em si mesma, é o caminho da salvação, o início da salvação.
Neste mundo todos sofrem: quer acreditemos em Deus quer o rejeitemos. Mas no Saltério, a dor torna-se relação, relação: um grito de ajuda à espera de encontrar um ouvido que ouça. Não pode permanecer sem sentido, sem propósito. Até as dores que sofremos não podem ser apenas casos específicos de uma lei universal: são sempre as “minhas” lágrimas. Pensai nisto: as lágrimas não são universais, são as “minhas” lágrimas. Cada um tem as próprias. As “minhas” lágrimas e a “minha” dor impelem-me a continuar com a oração. Sou as “minhas” lágrimas que jamais ninguém derramou antes de mim. Sim, muitos choraram, muitos. Mas as “minhas” lágrimas são as minhas, o “meu” sofrimento é meu, a minha dor é minha.
Antes de entrar na Sala, encontrei-me com os pais daquele sacerdote da diocese de Como que foi assassinado; ele foi morto no seu serviço para ajudar. As lágrimas daqueles pais são “deles” e cada um deles sabe quanto sofreu ao ver este filho que deu a sua vida ao serviço dos pobres. Quando queremos consolar alguém, não encontramos as palavras. Porquê? Porque não podemos chegar à sua dor, porque a “sua” dor é sua, as “suas” lágrimas são suas. O mesmo acontece conosco: as lágrimas, “a minha” dor é minha, as lágrimas são “minhas” e com estas lágrimas, com este sofrimento, dirijo-me ao Senhor.
Para Deus, todas as dores dos homens são sagradas. Assim reza o orante do salmo 56-55: «Vós conheceis os caminhos do meu exílio, vós recolhestes as minhas lágrimas no vosso cantil; não está tudo escrito no vosso livro?» (v. 9). Diante de Deus não somos desconhecidos, nem números. Somos rostos e corações, conhecidos um por um, pelo nome.
Nos salmos, o crente encontra uma resposta. Ele sabe que mesmo se todas as portas humanas estiverem trancadas, a porta de Deus está aberta. Mesmo se o mundo inteiro emitisse um veredito de condenação, em Deus há salvação.
“O Senhor ouve”: às vezes na oração é suficiente saber isto. Os problemas nem sempre se resolvem. Quem reza não é um iludido: sabe que muitas questões da vida terrena permanecem sem solução, sem saída; o sofrimento acompanhar-nos-á e, após uma batalha, haverá outras que nos esperam. Mas se formos ouvidos, tudo se torna mais suportável.
A pior coisa que pode acontecer é sofrer no abandono, sem ser recordado. É disto que a oração nos salva. Pois pode acontecer, e até frequentemente, que não compreendamos os desígnios de Deus. Mas os nossos gritos não estagnam aqui na terra: elevam-se até Ele, que tem o coração de Pai e chora por cada filho e filha que sofre e morre. Digo-vos uma coisa: faz-me bem, nos maus momentos, pensar no pranto de Jesus, quando chorou olhando para Jerusalém, quando chorou diante do túmulo de Lázaro. Deus chorou por mim, Deus chora, chora pelas nossas dores. Porque Deus quis fazer-se homem, dizia um escritor espiritual, para poder chorar. Pensar que Jesus chora comigo na dor é uma consolação: ajuda-nos a seguir em frente. Se nos mantivermos numa relação com Ele, a vida não nos poupa os sofrimentos, mas abre-se a um grande horizonte de bem e encaminha-se para a sua realização. Coragem, em frente com a oração. Jesus está sempre ao nosso lado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 14.10.2020
Catequese - 9. A oração de Elias
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Retomamos hoje as catequeses sobre a oração, que interrompemos para fazer a catequese sobre o cuidado da criação, e agora recomeçamos; e encontramos um dos personagens mais fascinantes de toda a Sagrada Escritura: o profeta Elias. Ele supera os limites do seu tempo e podemos ver a sua presença também nalguns episódios do Evangelho. Ele aparece ao lado de Jesus, juntamente com Moisés, no momento da Transfiguração (cf. Mt 17, 3). O próprio Jesus refere-se à sua figura para dar crédito ao testemunho de João Batista (cf. Mt 17, 10-13).
Na Bíblia, Elias aparece repentinamente, de uma forma misteriosa, proveniente de uma pequena aldeia que é completamente marginal (cf. 1 Rs 17, 1); e no final deixará a cena, sob o olhar do seu discípulo Eliseu, numa carruagem de fogo que o levará para o céu (cf. 2 Rs 2, 11-12). Portanto, é um homem sem uma origem exata, e sobretudo sem um fim, raptado para o céu: por este motivo, o seu regresso era esperado antes da vinda do Messias, como um precursor. Era assim que se esperava o regresso de Elias.
A Escritura apresenta Elias como um homem de fé cristalina: no seu próprio nome, que poderia significar “Javé é Deus”, está contido o segredo da sua missão. Ele será assim para o resto da sua vida: um homem integérrimo, incapaz de compromissos mesquinhos. O seu símbolo é o fogo, a imagem do poder purificador de Deus. Será o primeiro a ser posto à prova e permanecerá fiel. Ele é o exemplo de todas as pessoas de fé que conhecem tentações e sofrimentos, mas não deixam de viver à altura do ideal para o qual nasceram.
A oração é a seiva que alimenta constantemente a sua existência. Por esta razão, é um dos personagens mais queridos à tradição monástica, a ponto que alguns o elegeram pai espiritual da vida consagrada a Deus. Elias é o homem de Deus, que se levanta como defensor da primazia do Altíssimo. No entanto, também ele é obrigado a enfrentar as próprias fragilidades. É difícil dizer quais experiências lhe foram mais úteis: se a derrota dos falsos profetas no Monte Carmelo (cf. 1 Rs 18, 20-40), ou a desorientação na qual constata que «não é melhor do que os seus pais» (cf. 1 Rs 19, 4). Na alma de quem reza, o sentido da própria debilidade é mais precioso do que momentos de exaltação, quando parece que a vida é uma cavalgada de vitórias e sucessos. Na oração acontece sempre isto: momentos de oração que sentimos que nos animam, até de entusiasmo, e momentos de prece de dor, de aridez, de provações. A oração é assim: deixar-se levar por Deus e deixar-se inclusive flagelar por situações negativas e por tentações. Esta é uma realidade que se encontra em muitas outras vocações bíblicas, também no Novo Testamento; pensemos, por exemplo, em São Pedro e São Paulo. Também a vida deles era assim: momentos de exultação e momentos de desânimo, de sofrimento.
Elias é o homem de vida contemplativa e, ao mesmo tempo, de vida ativa, preocupado com os acontecimentos do seu tempo, capaz de se lançar contra o rei e a rainha, quando eles mandaram matar Nabot para se apoderarem da sua vinha (cf. 1 Rs 21, 1-24). Quanta necessidade temos de crentes, de cristãos zelosos, que ajam diante de pessoas que desempenham responsabilidades de dirigentes, com a coragem de Elias, para dizer: “isto não se deve fazer! Isto é um assassínio!”. Precisamos do espírito de Elias. Deste modo, ele mostra-nos que não deve haver dicotomia na vida de quantos rezam: está-se perante o Senhor e vai-se ao encontro dos irmãos aos quais Ele envia. A prece não é um fechar-se com o Senhor para mascarar a alma: não, isto não é oração, uma oração assim é fingida. A oração é um confronto com Deus e um deixar-se enviar para servir os irmãos. A prova da oração é o amor concreto ao próximo. E vice-versa: os crentes agem no mundo depois de terem, primeiro, silenciado e rezado; caso contrário, a sua ação é impulsiva, desprovida de discernimento, é um correr ofegante sem meta. Os crentes comportam-se assim, cometem tantas injustiças, porque não foram primeiro rezar diante do Senhor, discernir o que devem fazer.
As páginas da Bíblia sugerem que também a fé de Elias progrediu: ele cresceu na oração, aperfeiçoou-a pouco a pouco. Para ele, o rosto de Deus tornou-se mais nítido ao longo do caminho. Até atingir o seu ápice naquela experiência extraordinária, quando Deus se manifestou a Elias no monte (cf. 1 Rs 19, 9-13). Ele manifesta-se não na tempestade impetuosa, não no tremor de terra nem no fogo devorador, mas no «murmúrio de uma leve brisa» (v. 12). Ou melhor, uma tradução que reflete bem aquela experiência: um fio de silêncio sonoro. É assim que Deus se manifesta a Elias. É com este sinal humilde que Deus comunica com Elias, que naquele momento é um profeta fugitivo que perdeu a paz. Deus vai ao encontro de um homem cansado, de um homem que pensava ter falhado em todas as frentes, e com aquela brisa leve, com aquele fio de silêncio sonoro faz voltar ao seu coração a calma e a paz.
Esta é a vicissitude de Elias, mas parece escrita para todos nós. Em certas noites podemos sentir-nos inúteis e solitários. É então que a oração virá e baterá à porta do nosso coração. Todos nós podemos aceitar uma parte do manto de Elias, como o seu discípulo Eliseu aceitou metade do manto. E mesmo que tivéssemos feito algo de errado, ou se nos sentíssemos ameaçados e apavorados, regressando a Deus com a oração, voltarão também como que por milagre a serenidade e a paz. Eis quanto nos ensina o exemplo de Elias.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 07.10.2020
Nas últimas semanas, refletimos juntos, à luz do Evangelho, sobre como curar o mundo que sofre de um mal-estar que a pandemia realçou e acentuou. Já havia o mal-estar: a pandemia realçou-o mais, acentuou-o. Percorremos os caminhos da dignidade, da solidariedade e da subsidiariedade, caminhos indispensáveis para promover a dignidade humana e o bem comum. E, como discípulos de Jesus, começamos a seguir os seus passos, optando pelos pobres, reconsiderando o uso dos bens e cuidando da casa comum. No meio da pandemia que nos aflige, ancorámo-nos nos princípios da doutrina social da Igreja, deixando-nos guiar pela fé, pela esperança e pela caridade. Aqui encontramos uma ajuda sólida para sermos agentes de transformação que fazem sonhos grandiosos, que não se detêm nas mesquinharias que dividem e magoam, mas encorajam a gerar um mundo novo e melhor.
Gostaria que este percurso não termine com estas minhas catequeses, mas que possamos continuar a caminhar juntos, «mantendo os olhos fixos em Jesus» (Hb 12, 2), como ouvimos no início; o nosso olhar em Jesus que salva e cura o mundo. Como o Evangelho nos mostra, Jesus curou os doentes de todos os tipos (cf. Mt 9, 35), restituiu a vista aos cegos, a palavra aos mudos e audição aos surdos. E quando curava doenças e enfermidades físicas, também curava o espírito perdoando pecados, porque Jesus perdoa sempre, bem como as «dores sociais» incluindo os marginalizados (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1421). Jesus, que renova e reconcilia cada criatura (cf. 2 Cor 5, 17; Cl 1, 19-20), concede-nos os dons necessários para amar e curar como ele sabia fazer (cf. Lc 10, 1-9; Jo 15, 9-17), para cuidar de todos sem distinção de raça, língua ou nação.
Para que isto aconteça realmente, precisamos de contemplar e apreciar a beleza de cada ser humano e de cada criatura. Fomos concebidos no coração de Deus (cf. Ef 1, 3-5). «Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário»[1]. Além disso, cada criatura tem algo a dizer-nos sobre Deus Criador (cf. Enc. Laudato si', 69.239). Reconhecer esta verdade e dar graças pelos vínculos íntimos da nossa comunhão universal com todas as pessoas e todas as criaturas ativa «um cuidado generoso e cheio de ternura» (ibid., 220). Ajuda-nos também a reconhecer Cristo presente nos nossos irmãos e irmãs pobres e sofredores, a encontrá-los e a ouvir o seu clamor e o clamor da terra que lhes faz eco (cf. ibid., 49).
Mobilizados interiormente por estes clamores que reclamam de nós outra linha de ação (cf. ibid., 53), reclamam uma mudança, poderemos contribuir para a cura das relações com os nossos dons e capacidades (cf. ibid., 19). Poderemos regenerar a sociedade e não voltar à chamada “normalidade”, que é uma normalidade doentia, aliás, estava doente já antes da pandemia: a pandemia realçou-a! “Agora voltemos à normalidade”: não, assim não pode ser, porque esta normalidade estava doente de injustiças, desigualdades e degradação ambiental. A normalidade a que somos chamados é a do Reino de Deus, onde «os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres» (Mt 11, 5). E ninguém faz de contas olhando para o outro lado. É isto que temos de fazer para mudar. Na normalidade do Reino de Deus o pão chega a todos e sobra, a organização social baseia-se em contribuir, partilhar e distribuir, não em possuir, excluir e acumular (cf. Mt 14, 13-21). O gesto que faz progredir uma sociedade, uma família, um bairro, uma cidade, todos, é doar-se, dar, que não é dar esmola, mas uma dádiva que vem do coração. Um gesto que afasta o egoísmo e a ansiedade de possuir. Mas o modo cristão de o fazer não é um modo mecânico: é um modo humano. Nunca conseguiremos sair da crise que emergiu da pandemia, mecanicamente, com novos instrumentos - que são muito importantes, que nos fazem ir em frente e dos quais não devemos ter medo - mas sabendo que os meios mais sofisticados poderão fazer muitas coisas, mas uma coisa eles nunca poderão fazer: a ternura. E a ternura é o próprio sinal da presença de Jesus. Aproximar-se do outro para caminhar, para curar, para ajudar, para se sacrificar pelo outro.
Assim, a normalidade do Reino de Deus é importante: que o pão chegue a todos, a organização social se baseie em contribuir, partilhar e distribuir, com ternura, e não em possuir, excluir e acumular. Pois no final da existência nada levaremos para a outra vida!
Um pequeno vírus continua a causar feridas profundas e a expor as nossas vulnerabilidades físicas, sociais e espirituais. Pôs a nu a grande desigualdade que reina no mundo: desigualdade de oportunidades, de bens, de acesso aos cuidados médicos, à tecnologia, à educação: milhões de crianças não podem ir à escola, e assim por diante. Estas injustiças não são naturais nem inevitáveis. São obra do homem, vêm de um modelo de crescimento separado dos valores mais profundos. O desperdício das sobras de refeições: com esse desperdício podemos dar de comer a toda a gente. E isto fez com que muitas pessoas perdessem a esperança e aumentou a incerteza e a angústia. É por isso que, para sair da pandemia, temos de encontrar a cura não só para o coronavírus - que é importante! - mas também para os grandes vírus humanos e socioeconómicos. Não devemos escondê-los, dando uma pincelada para que não possam ser vistos. E certamente não podemos esperar que o modelo económico subjacente ao desenvolvimento injusto e insustentável resolva os nossos problemas. Não o fez nem o fará, pois não o pode fazer, apesar de alguns falsos profetas continuarem a prometer “o efeito dominó” que nunca chega[2]. Ouvistes o teorema do copo: o importante é que o copo se encha e assim depois cai sobre os pobres e sobre os demais, e recebem riquezas. Mas há um fenómeno: o copo começa a encher-se e quando está quase cheio, cresce, cresce e cresce mas nunca acontece o efeito dominó. Deve-se ter cuidado.
Precisamos de trabalhar urgentemente para gerar boas políticas, para conceber sistemas de organização social que recompensem a participação, o cuidado e a generosidade, e não a indiferença, a exploração e os interesses particulares. Devemos ir em frente com ternura. Uma sociedade solidária e equitativa é uma sociedade mais saudável. Uma sociedade participativa - onde os “últimos” são considerados os “primeiros” - fortalece a comunhão. Uma sociedade onde a diversidade é respeitada é muito mais resistente a qualquer tipo de vírus.
Coloquemos este caminho de cura sob a proteção da Virgem Maria, Nossa Senhora da Saúde. Ela, que carregou Jesus no seu ventre, nos ajude a ter confiança. Animados pelo Espírito Santo, poderemos trabalhar juntos para o Reino de Deus que Cristo inaugurou, vindo até nós, neste mundo. É um Reino de luz no meio da escuridão, de justiça no meio de tantos ultrajes, de alegria no meio de tanta dor, de cura e salvação no meio da doença e da morte, de ternura no meio do ódio. Que Deus nos conceda “viralizar” o amor e globalizar a esperança à luz da fé.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 30.09.2020
[1] Bento XVI, Homilia para o Início do Ministério Petrino (24 de abril de 2005); cf. Laudato si', 65.
[2] "Trickle-down effect" em inglês, "derrame" em espanhol (cf. Evangelii gaudium, 54).
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Para sair de uma pandemia, é preciso cuidar-se e cuidar uns dos outros. E devemos apoiar aqueles que cuidam dos mais débeis, dos doentes e dos idosos. Há o hábito de deixar os idosos de lado, de os abandonar: isso é mau. Estas pessoas - bem definidas pelo termo espanhol “cuidadores”, aqueles que cuidam dos doentes - desempenham um papel essencial na sociedade atual, mesmo que muitas vezes não recebam o reconhecimento nem a remuneração que merecem. Cuidar é uma regra de ouro da nossa condição humana, e traz consigo saúde e esperança (cf. Enc. Laudato si' [LS], 70). Cuidar dos doentes, dos necessitados, dos abandonados: esta é uma riqueza humana e também cristã.
Devemos de igual modo dirigir este cuidado à nossa casa comum: à terra e a cada criatura. Todas as formas de vida estão interligadas (cf. ibid., 137-138), e a nossa saúde depende da saúde dos ecossistemas que Deus criou e dos quais Ele nos encarregou de cuidar (cf. Gn 2, 15). Por outro lado, abusar deles, é um pecado grave que prejudica, que é prejudicial e que nos deixa doentes (cf. LS 8; 66). O melhor antídoto contra este mau uso da nossa casa comum é a contemplação (cf. ibid., 85; 214). Mas porquê? Não há vacina para isto, para o cuidado da casa comum, para não a pôr de lado? Qual é o antídoto contra a doença de não tomar conta da casa comum? É a contemplação. «Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos» (ibid., 215). Também no respeitante ao “descartável”. No entanto, a nossa casa comum, a criação, não é um mero “recurso”. As criaturas têm um valor em si mesmas e «refletem, cada uma à sua maneira, um raio da infinita sabedoria e bondade de Deus» (Catecismo da Igreja Católica, 339). Este valor e este raio de luz divina devem ser descobertos e, para os descobrirmos, precisamos de estar em silêncio, precisamos de ouvir, e precisamos de contemplar. Também a contemplação cura a alma.
Sem contemplação, é fácil cair num antropocentrismo desequilibrado e soberbo, o “Eu” no centro de tudo, que sobredimensiona o nosso papel como seres humanos, posicionando-nos como dominadores absolutos de todas as outras criaturas. Uma interpretação distorcida dos textos bíblicos sobre a criação contribuiu para esta má interpretação, que leva à exploração da terra ao ponto de a sufocar. Exploração da criação: este é o pecado. Julgamos que estamos no centro, pretendendo ocupar o lugar de Deus e assim arruinamos a harmonia da criação, a harmonia do desígnio de Deus. Tornamo-nos predadores, esquecendo a nossa vocação como guardiões da vida. Certamente, podemos e devemos trabalhar a terra para viver e nos desenvolver. Mas trabalho não é sinónimo de exploração, e está sempre acompanhado de cuidado: lavrar e proteger, trabalhar e cuidar... Esta é a nossa missão (cf. Gn 2, 15). Não podemos pretender continuar a crescer a nível material, sem cuidarmos da casa comum que nos acolhe. Os nossos irmãos e irmãs mais pobres e a nossa mãe terra gemem pelos danos e injustiças que causámos e reclamam outro rumo. Reclamam de nós uma conversão, uma mudança de rumo: cuidar também da terra, da criação.
É, pois, importante recuperar a dimensão contemplativa, ou seja, olhar para a terra, para criação como um dom, e não como algo a ser explorado para fins lucrativos. Quando contemplamos, descobrimos nos outros e na natureza algo muito maior do que a sua utilidade. Eis o cerne do problema: contemplar é ir além da utilidade de uma coisa. Contemplar a beleza não significa explorá-la: contemplar é gratuidade. Descobrimos o valor intrínseco das coisas que lhes foi dado por Deus. Como muitos mestres espirituais nos ensinaram, o céu, a terra, o mar, cada criatura possui esta capacidade icónica, esta capacidade mística de nos reconduzir ao Criador e à comunhão com a criação. Por exemplo, Santo Inácio de Loyola, no final dos seus Exercícios espirituais, convida-nos a “Contemplar para chegar ao amor”, ou seja, a considerar como Deus olha para as suas criaturas e alegrar-se com elas; a descobrir a presença de Deus nas suas criaturas e, com liberdade e graça, amá-las e cuidar delas.
A contemplação, que nos leva a uma atitude de cuidado, não significa olhar para a natureza de fora, como se não estivéssemos imersos nela. Mas estamos dentro da natureza, somos parte da natureza. Pelo contrário, partimos do interior, reconhecendo-nos como parte da criação, tornando-nos protagonistas e não meros espetadores de uma realidade amorfa apenas para ser explorada. Aqueles que contemplam desta forma sentem-se maravilhados não só pelo que veem, mas também porque se sentem parte integrante desta beleza; e inclusive se sentem chamados a preservá-la, a protegê-la. E há uma coisa que não devemos esquecer: quem não sabe contemplar a natureza e a criação, não sabe contemplar as pessoas na sua riqueza. E quem vive para explorar a natureza, acaba por explorar as pessoas e tratá-las como escravas. Esta é uma lei universal: se não se sabe contemplar a natureza, será muito difícil saber contemplar as pessoas, a beleza das pessoas, o irmão, a irmã.
Quem sabe contemplar, mais facilmente se porá em ação para mudar o que produz degradação e danos à saúde. Comprometer-se-á a educar e promover novos hábitos de produção e consumo, a contribuir para um novo modelo de crescimento económico que garanta o respeito pela casa comum e o respeito pelas pessoas. O contemplativo em ação tende a tornar-se o guardião do ambiente: isto é muito bom! Cada um de nós deve ser guardião do ambiente, da pureza do ambiente, procurando conjugar saberes ancestrais de culturas milenares com novos conhecimentos técnicos, de modo a que o nosso estilo de vida seja sempre sustentável.
Por fim, contemplar e cuidar: estas são duas atitudes que mostram o caminho para corrigir e reequilibrar a nossa relação como seres humanos com a criação. Muitas vezes, a nossa relação com a criação parece ser uma relação entre inimigos: destruir a criação em meu benefício; explorar a criação em meu proveito. Não esqueçamos que isto se paga caro; não esqueçamos aquele ditado espanhol: “Deus perdoa sempre; nós perdoamos de vez em quando; a natureza nunca perdoa”. Hoje estava a ler no jornal sobre aqueles dois grandes glaciares na Antártida, perto do Mar de Amundsen: eles estão prestes a desabar. Será terrível, porque o nível do mar subirá e isto causará muitas, muitas dificuldades e muito mal. E porquê? Por causa do sobreaquecimento, por não se cuidar do ambiente, por não se cuidar da casa comum. Por outro lado, quando tivermos esta relação - deixem-me dizer a palavra - “fraterna” no sentido figurativo com a criação, tornar-nos-emos guardiões da casa comum, guardiões da vida e guardiões da esperança, preservaremos o património que Deus nos confiou para que as gerações futuras o possam desfrutar. E alguns podem dizer: “Mas, eu safo-me desta maneira”. Mas o problema não é como te safas hoje - isto foi dito por um teólogo alemão, protestante, competente: Bonhoeffer - o problema não é como te desenrascas hoje; o problema é: qual será a herança, a vida da geração futura? Pensemos nos filhos, nos netos: que lhes deixaremos se explorarmos a criação? Protejamos este caminho para nos tornarmos “guardiões” da casa comum, guardiões da vida e da esperança. Preservemos o património que Deus nos confiou, para que as gerações futuras possam usufruir dele. Penso de modo especial nos povos indígenas, com os quais todos nós temos uma dívida de gratidão - até de penitência, para reparar o mal que lhes fizemos. Mas estou também a pensar nos movimentos, associações, grupos populares, que estão comprometidos a tutelar o próprio território com os seus valores naturais e culturais. Estas realidades sociais nem sempre são apreciadas, por vezes são até impedidas, porque não produzem dinheiro; mas na realidade contribuem para uma revolução pacífica, poderíamos chamar-lhe a “revolução do cuidado”. Contemplar para cuidar, contemplar para salvaguardar, preservar a nós, a criação, os nossos filhos, os nossos netos, e tutelar o futuro. Contemplar para cuidar e para preservar e deixar uma herança à futura geração.
Mas não se deve contudo delegar a alguns: aquilo que é tarefa de cada ser humano. Cada um de nós pode e deve tornar-se um “guardião da casa comum”, capaz de louvar a Deus pelas suas criaturas, de contemplar as criaturas e de as proteger.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.08.2020
Catequese - “Curar o Mundo”: 5. A solidariedade e a virtude da fé
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Depois de tantos meses retomamos o nosso encontro direto e já não através da tela. Direto. Isto é bom! A atual pandemia pôs em evidência a nossa interdependência: estamos todos ligados uns aos outros, tanto no mal como no bem. Por conseguinte, para sairmos melhores desta crise, devemos fazê-lo juntos, não sozinhos, juntos. Não sozinhos porque não se pode! Ou juntos ou não é possível. Temos que o fazer em conjunto, todos nós, em solidariedade. Gostaria de sublinhar hoje esta palavra: solidariedade.
Como família humana, temos uma origem comum em Deus; vivemos numa casa comum, o planeta-jardim, a terra em que Deus nos colocou; e temos um destino comum em Cristo. Mas quando esquecemos tudo isto, a nossa interdependência torna-se a dependência de uns em relação aos outros – perdemos esta harmonia da interdependência na solidariedade – aumentando a desigualdade e a marginalização; o tecido social debilita-se e o meio ambiente deteriora-se. É sempre o mesmo modo de agir.
Portanto, hoje o princípio de solidariedade é mais necessário do que nunca, como ensinou São João Paulo II (cf. Enc. Sollicitudo rei socialis, 38-40). Num mundo interligado, experimentamos o que significa viver na mesma “aldeia global”. Esta expressão é bonita: o grande mundo mais não é do que uma aldeia global porque tudo está interligado. Mas nem sempre transformamos esta interdependência em solidariedade. Há um longo caminho entre a interdependência e a solidariedade. Ao contrário, o egoísmo - individual, nacional e de grupos de poder - e a rigidez ideológica alimentam «estruturas de pecado» (ibid., 36).
«Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra “solidariedade” significa muito mais do que algumas ações esporádicas de generosidade. É mais! Supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns» (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 188). Isto significa solidariedade. Não é apenas questão de ajudar os outros – é bom fazer isto, mas é mais do que isto – trata-se de justiça (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1938-1940). Para ser solidária e dar frutos, a interdependência precisa de raízes fortes no humano e na natureza criada por Deus, precisa de respeito pelos rostos e pela Terra.
A Bíblia admoesta-nos desde o início. Pensemos na narração da Torre de Babel (cf. Gn 11, 1-9) que descreve o que acontece quando procuramos alcançar o céu - a nossa meta - ignorando a ligação com o humano, com a criação e com o Criador. É um modo de dizer: isto acontece todas as vezes que alguém quer subir, subir sem ter os outros em consideração. Só eu! Pensemos na torre. Construímos torres e arranha-céus, mas destruímos a comunidade. Unificamos edifícios e línguas, mas mortificamos a riqueza cultural. Queremos ser senhores da Terra, mas arruinamos a biodiversidade e o equilíbrio ecológico. Falei-vos noutra audiência sobre aqueles pescadores de San Benedetto del Tronto que este ano vieram e me disseram: “Tiramos 24 toneladas de lixo do mar, metade do qual era plástico”. Refleti! Eles têm o espírito para pescar, mas também para tirar o lixo e para limpar o mar. Mas isto [a poluição] arruína a terra, não ser solidário com a terra, que é um dom, e para com o equilíbrio ecológico.
Lembro-me de um conto medieval que descreve esta “síndrome de Babel”, que é quando não existe solidariedade. Esta narração medieval conta que durante a construção da torre, quando um homem caía – eram escravos – e morria, ninguém dizia nada, no máximo: diziam “pobre homem, errou e caiu”. Ao contrário, se caísse um tijolo, todos se queixavam. E se alguém fosse culpado era punido. Porquê? Porque um tijolo era difícil de fazer, de preparar, de cozer. Eram necessários tempo e trabalho para fabricar um tijolo. Um tijolo valia mais do que a vida humana. Cada um de nós penso no que acontece hoje. Infelizmente, ainda hoje pode acontecer algo semelhante. Algumas quotas do mercado financeiro – vimos nos jornais estes dias – caem e as notícias aparecem em todas as agências. Milhares de pessoas morrem de fome, de miséria, e ninguém fala sobre isto.
O Pentecostes está diametralmente oposto a Babel, ouvimos no início da audiência (cf. At 2, 1-3). Descendo do alto como vento e fogo, o Espírito Santo investe a comunidade fechada no cenáculo, infunde-lhe o poder de Deus, impele-a a sair e a proclamar o Senhor Jesus a todos. O Espírito cria unidade na diversidade, cria harmonia. Na narração da Torre de Babel não havia harmonia; havia aquele ir em frente para ganhar. Ali o homem era um mero instrumento, uma simples “força de trabalho”, mas aqui, no Pentecostes, cada um de nós é um instrumento, mas um instrumento comunitário que participa inteiramente na construção da comunidade. São Francisco de Assis conhecia bem isto e, animado pelo Espírito, dava a todas as pessoas, aliás, a todas as criaturas, o nome de irmão ou irmã (cf. LS, 11; cf. São Boaventura, Legenda maior, VIII, 6: FF 1.145). Recordemos também o irmão lobo.
No Pentecostes, Deus faz-se presente e inspira a fé da comunidade unida na diversidade e na solidariedade. Diversidade e solidariedade unidas em harmonia, este é o caminho. Uma diversidade solidária possui os “anticorpos” para que a singularidade de cada um - que é um dom, único e irrepetível - não adoeça de individualismo, de egoísmo. A diversidade solidária também possui os anticorpos para curar estruturas e processos sociais que degeneraram em sistemas de injustiça, em sistemas de opressão (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 192). Portanto, hoje a solidariedade é o caminho a percorrer rumo a um mundo pós-pandemia, para a cura das nossas doenças interpessoais e sociais. Não há outro. Ou seguimos o caminho da solidariedade ou a situação vai piorar. Quero repetir: não se sai de uma crise da mesma forma que antes. A pandemia é uma crise. De uma crise só se sai melhores ou piores. Temos que escolher. E a solidariedade é precisamente um caminho para sairmos melhores da crise, não com mudanças superficiais, com uma pincelada, e tudo está bem. Não, melhores!
No meio da crise, uma solidariedade guiada pela fé permite-nos traduzir o amor de Deus na nossa cultura globalizada, não construindo torres nem muros – e quantos muros estão a ser construídos hoje – que dividem mas depois desmoronam, mas tecendo comunidades e apoiando processos de crescimento verdadeiramente humano e sólido. E nisto ajuda a solidariedade. Faço uma pergunta: penso nas necessidades dos outros? Cada qual responda no seu coração.
No meio de crises e tempestades, o Senhor interpela-nos e convida-nos a despertar e a ativar esta solidariedade capaz de conferir solidez, apoio e um sentido a estas horas em que tudo parece naufragar. A criatividade do Espírito Santo nos encoraje a gerar novas formas de hospitalidade familiar, fraternidade fecunda e solidariedade universal. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.09.2020
Catequese - “Curar o Mundo”: 4. O destino universal dos bens e a virtude da esperança
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
Perante a pandemia e as suas consequências sociais, muitos correm o risco de perder a esperança. Neste tempo de incerteza e angústia, convido todos a aceitarem o dom da esperança que vem de Cristo. É Ele que nos ajuda a navegar nas águas tumultuosas da doença, da morte e da injustiça, que não têm a última palavra sobre o nosso destino final.
A pandemia pôs em evidência e agravou os problemas sociais, especialmente a desigualdade. Alguns podem trabalhar de casa, enquanto para muitos outros isto é impossível. Algumas crianças, apesar das dificuldades, podem continuar a receber uma educação escolar, enquanto para muitas outras houve uma brusca interrupção. Algumas nações poderosas podem emitir moeda para enfrentar a emergência, enquanto que para outras isso significaria hipotecar o futuro.
Estes sintomas de desigualdade revelam uma doença social; é um vírus que provém de uma economia doente. Devemos simplesmente dizê-lo: a economia está doente. Adoeceu. É o resultado de um crescimento económico iníqua - esta é a doença: o fruto de um crescimento económico iníquo - que prescinde dos valores humanos fundamentais. No mundo de hoje, muito poucas pessoas ricas possuem mais do que o resto da humanidade. Repito isto porque nos fará refletir: poucos riquíssimos, um pequeno grupo, possui mais que o resto da humanidade. Esta é mera estatística. É uma injustiça que clama aos céus! Ao mesmo tempo, este modelo económico é indiferente aos danos infligidos à casa comum. Não cuida da casa comum. Estamos quase a superar muitos dos limites do nosso maravilhoso planeta, com consequências graves e irreversíveis: desde a perda de biodiversidade e alterações climáticas ao aumento do nível dos mares e à destruição das florestas tropicais. A desigualdade social e a degradação ambiental andam de mãos dadas e têm a mesma raiz (cf. Enc. Laudato si', 101): a do pecado de querer possuir, de querer dominar os irmãos e irmãs, de pretender possuir e dominar a natureza e o próprio Deus. Mas este não é o desígnio da criação.
«No princípio, Deus confiou a terra e os seus recursos à gestão comum da humanidade, para que dela cuidasse» (Catecismo da Igreja Católica, 2402). Deus pediu-nos que dominássemos a terra em Seu nome (cf. Gn 1, 28), cultivando-a e cuidando dela como se fosse um jardim, o jardim de todos (cf. Gn 2, 15). «Enquanto “cultivar” quer dizer lavrar ou trabalhar [...] “guardar” significa proteger..., preservar» (LS, 67). Mas atenção a não interpretar isto como uma carta branca para fazer da terra aquilo que se quer. Não. Existe «uma relação responsável de reciprocidade» (ibid.) entre nós e a natureza. Uma relação de reciprocidade responsável entre nós e a natureza. Recebemos da criação e damos por nossa vez. «Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger» (ibidem). Ambas as partes.
De fato, a terra «precede-nos e foi-nos dada» (ibid.), foi dada por Deus «a toda a humanidade» (CIC, 2402). E por isso é nosso dever assegurar que os seus frutos cheguem a todos, e não apenas a alguns. Este é um elemento-chave da nossa relação com os bens terrenos. Como recordaram os padres do Concílio Vaticano II, «quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros» (Const. past. Gaudium et spes, 69). De facto, «a propriedade dum bem faz do seu detentor um administrador da providência de Deus, com a obrigação de o fazer frutificar e de comunicar os seus benefícios aos outros» (CIC, 2404). Nós somos administradores dos bens, não donos. Administradores. “Sim, mas o bem é meu”. É verdade, é teu, mas para o administrares, não para o possuíres egoisticamente.
Para assegurar que o que possuímos seja um valor para a comunidade, «a autoridade política tem o direito e o dever de regular, em função do bem comum» (ibid., 2406; [cf. GS 71; São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 42; Carta enc. Centesimus annus, 40.48]).
A «subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens [...] é uma “regra de ouro” do comportamento social, e o primeiro princípio de toda a ordem ético-social» (LS, 93; [cf. São João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens, 19]).
As propriedades, o dinheiro são instrumentos que podem servir para a missão. Mas transformamo-los facilmente em fins individuais ou coletivos. E quando isto acontece, são minados os valores humanos essenciais. O homo sapiens deforma-se e torna-se uma espécie de homo oeconomicus - num sentido menor - individualista, calculista e dominador. Esquecemos que, sendo criados à imagem e semelhança de Deus, somos seres sociais, criativos e solidários, com uma imensa capacidade de amar. Com frequência esquecemo-nos disto. De facto, somos os seres mais cooperadores entre todas as espécies, e florescemos em comunidade, como se pode ver na experiência dos santos. Há um ditado espanhol que me inspirou esta frase, que reza assim: Florescemos en racimo, como los santos. Florescemos em comunidade como se vê na experiência dos santos.
Quando a obsessão de possuir e dominar exclui milhões de pessoas dos bens primários; quando a desigualdade econômica e tecnológica é tal que dilacera o tecido social; e quando a dependência do progresso material ilimitado ameaça a casa comum, então não podemos ficar a olhar de braços cruzados. Não, isso é desolador. Não podemos ficar a olhar! Com os olhos fixos em Jesus (cf. Hb 12, 2) e com a certeza de que o seu amor opera através da comunidade dos seus discípulos, devemos agir em conjunto na esperança de gerar algo diferente e melhor. A esperança cristã, enraizada em Deus, é a nossa âncora. Sustenta a vontade de partilhar, fortalecendo a nossa missão como discípulos de Cristo, que partilhou tudo connosco.
Isto foi compreendido pelas primeiras comunidades cristãs, que, como nós, viveram tempos difíceis. Conscientes de formar um só coração e uma só alma, punham todos os seus bens em comum, dando testemunho da abundante graça de Cristo sobre eles (cf. At 4, 32-35). Nós estamos a viver uma crise. A pandemia pôs-nos todos em crise. Mas recordai-vos: de uma crise não se pode sair iguais, ou saímos melhores ou saímos piores. Eis a nossa opção. Depois da crise, continuaremos com este sistema econômico de injustiça social e de desprezo pelo cuidado do meio ambiente, da criação, da casa comum? Pensemos nisto. Que as comunidades cristãs do século XXI recuperem esta realidade – o cuidado da criação e a justiça social: caminham juntas - dando assim testemunho da Ressurreição do Senhor. Se cuidarmos dos bens que o Criador nos concede, se partilharmos o que possuímos para que não falte nada a ninguém, então de facto podemos inspirar esperança para regenerar um mundo mais saudável e mais justo.
E para terminar, pensemos nas crianças. Lede as estatísticas: quantas crianças, hoje, morrem de fome devido à má distribuição das riquezas, a um sistema econômico como disse acima; e quantas crianças, hoje, não têm direito à escolarização, pelo mesmo motivo. Que esta imagem, das crianças necessitadas, com fome e com falta de escolarização, nos ajude a compreender que desta crise devemos sair melhores. Obrigado.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 29.08.2020
Catequese - “Curar o Mundo”: 6: O Bem-comum
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A crise que estamos a viver devido à pandemia atinge todos; podemos sair dela melhores se todos juntos procurarmos o bem comum; caso contrário sairemos piores. Infelizmente, estamos a assistir ao surgimento de interesses de parte. Por exemplo, há quem deseje apropriar-se de possíveis soluções, como no caso das vacinas e depois vendê-las aos outros. Algumas pessoas aproveitam-se da situação para fomentar divisões: para procurar vantagens econômicas ou políticas, gerando ou aumentando os conflitos. Outros simplesmente não se importam com o sofrimento dos outros, passam adiante e seguem o seu caminho (cf. Lc 10, 30-32). São os devotos de Pôncio Pilatos, lavam as mãos.
A resposta cristã à pandemia e às consequentes crises socioeconômicas baseia-se no amor, antes de tudo, no amor de Deus que sempre nos precede (cf. 1 Jo 4, 19). Ele ama-nos primeiro, Ele precede-nos sempre no amor e nas soluções. Ele ama-nos incondicionalmente, e quando aceitamos este amor divino, então podemos responder de forma semelhante. Amo não só aqueles que me amam: a minha família, os meus amigos, o meu grupo, mas também aqueles que não me amam, amo inclusive os que não me conhecem, amo também os que são estrangeiros, e até aqueles que me fazem sofrer ou que considero inimigos (cf. Mt 5, 44). Esta é a sabedoria cristã, esta é a atitude de Jesus. E o ponto mais elevado da santidade, digamos assim, é amar os inimigos, e não é fácil. Claro, amar todos, inclusive os inimigos, é difícil - diria que é uma arte! Mas é uma arte que pode ser aprendida e melhorada. O verdadeiro amor, que nos torna fecundos e livres, é sempre expansivo e inclusivo. Este amor cuida, cura e faz bem. Muitas vezes faz melhor uma carícia do que muitas argumentações, uma carícia de perdão e não muitas palavras de defesa. É o amor inclusivo que cura.
Portanto, o amor não se limita às relações entre duas ou três pessoas, amigos, ou família, vai além. Inclui as relações cívicas e políticas (cf. Catecismo da Igreja Católica [CIC], 1907-1912), incluindo a relação com a natureza (Enc. Laudato si' [LS], 231). Dado que somos seres sociais e políticos, uma das mais altas expressões de amor é precisamente o amor social e político, que é decisivo para o desenvolvimento humano e para enfrentar qualquer tipo de crise (ibid., 231). Sabemos que o amor fecunda famílias e amizades; mas é bom lembrar que também fecunda relações sociais, culturais, econômicas e políticas, permitindo-nos construir uma “civilização do amor”, como gostava de dizer São Paulo VI (Mensagem para o Décimo Dia Mundial da Paz,1 de Janeiro de 1977: AAS 68 [1976], 709) e, na esteira, São João Paulo II. Sem esta inspiração, a cultura do egoísmo, da indiferença, do descarte, prevalece, ou seja, descartar aquilo de que eu não gosto, o que eu não posso amar ou aqueles que na minha opinião são inúteis na sociedade. Hoje, à entrada, um casal disse-me: “reze por nós porque temos um filho deficiente”. Perguntei: “quantos anos tem? - muitos – e o que fazeis? - nós acompanhamo-lo, ajudamo-lo”. Uma vida inteira dos pais para aquele filho deficiente. Isto é amor. E os inimigos, os adversários políticos, segundo a nossa opinião, parecem ser deficientes políticos e sociais, mas parecem. Só Deus sabe se o são ou não. Mas nós devemos amá-los, devemos dialogar, devemos construir esta civilização do amor, esta civilização política, social, da unidade de toda a humanidade. Tudo isto é o oposto de guerras, divisões, invejas, até das guerras em família. O amor inclusivo é social, é familiar, é político: o amor permeia tudo!
O coronavírus mostra-nos que o verdadeiro bem para cada um é um bem comum, não só individual e, vice-versa, o bem comum é um verdadeiro bem para a pessoa (cf. CIC, 1905-1906). Se alguém procura apenas o próprio bem é um egoísta. Ao contrário, a pessoa é mais pessoa quando abre o próprio bem a todos, o partilha. A saúde não é apenas individual, mas também um bem público. Uma sociedade saudável é aquela que cuida da saúde de todos.
Um vírus que não conhece barreiras, fronteiras, distinções culturais nem políticas deve ser enfrentado com um amor sem barreiras, fronteiras nem distinções. Este amor pode gerar estruturas sociais que nos encorajam a partilhar em vez de competir, que nos permitem incluir os mais vulneráveis em vez de os descartar, e que nos ajudam a expressar o melhor da nossa natureza humana e não o pior. O verdadeiro amor não conhece a cultura do descarte, não sabe o que isso é. De fato, quando amamos e geramos criatividade, quando geramos confiança e solidariedade, então emergem iniciativas concretas para o bem comum (Cf. S. João Paulo II, Enc. Sollicitudo rei socialis, 38) .E isto é verdade tanto a nível de pequenas e grandes comunidades como a nível internacional. Aquilo que se faz em família, no bairro, na aldeia, na grande cidade e internacionalmente é o mesmo: é a mesma semente que cresce e dá fruto. Se tu, em família, no bairro, começares com a inveja, com a luta, no final haverá a “guerra”. Ao contrário, se começares com o amor, a partilhar o amor, o perdão, então haverá o amor e o perdão para todos.
Pelo contrário, se as soluções para a pandemia tiverem a marca do egoísmo, quer de pessoas, empresas ou nações, talvez consigamos sair do coronavírus, mas certamente não da crise humana e social que o vírus evidenciou e acentuou. Portanto, prestai atenção a não construir sobre a areia (cf. Mt 7, 21-27)! Para construir uma sociedade saudável, inclusiva, justa e pacífica, temos que o fazer sobre a rocha do bem comum (ibid., 10).O bem comum é uma rocha. E esta é a tarefa de todos nós, e não apenas de alguns especialistas. São Tomás de Aquino disse que a promoção do bem comum é um dever de justiça que recai sobre todos os cidadãos. Cada cidadão é responsável pelo bem comum. E, para os cristãos, é também uma missão. Como ensina Santo Inácio de Loyola, orientar os nossos esforços diários para o bem comum é uma forma de receber e difundir a glória de Deus.
Infelizmente, a política muitas vezes não goza de boa reputação, e nós sabemos porquê. Isto não significa que todos os políticos são maus, não, não pretendo dizer isto. Digo apenas que infelizmente a política, com frequência, não goza de boa fama. Contudo, não nos devemos resignar a esta visão negativa, mas reagir demonstrando com factos que uma boa política é possível, aliás, indispensável(cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz 1 de Janeiro de 2019 [8 de Dezembro de 2018]), aquela que coloca no centro a pessoa humana e o bem comum. Se lerdes a história da humanidade, encontrareis muitos políticos, santo, que percorreram este caminho. É possível na medida em que cada cidadão e, em particular, aqueles que assumem compromissos e encargos sociais e políticos, enraízam as suas ações em princípios éticos e as animam com amor social e político. Os cristãos, especialmente os fiéis leigos, são chamados a dar bom testemunho disto e podem fazê-lo através da virtude da caridade, cultivando a sua intrínseca dimensão social.
Por conseguinte, chegou o momento de incrementar o nosso amor social – desejo frisar isto: o nosso amor social – contribuindo todos, a começar pela nossa pequenez. O bem comum requer a participação de todos. Se cada um contribuir com a sua parte, e se ninguém for excluído, podemos regenerar boas relações a nível comunitário, nacional e internacional e também em harmonia com o meio ambiente (cf. LS, 236). Assim, nos nossos gestos, mesmo nos mais humildes, tornar-se-á visível algo da imagem de Deus que temos dentro de nós, porque Deus é Trindade, Deus é Amor. Esta é a definição mais bonita de Deus na Bíblia. É-nos oferecida pelo apóstolo João, que amava tanto Jesus: Deus é amor. Com a sua ajuda, podemos curar o mundo trabalhando juntos para o bem comum, não só para o próprio bem, mas para o bem comum, de todos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.09.2020
Amados irmãos e irmãs, bom dia!
A pandemia acentuou a difícil situação dos pobres e o grande desequilíbrio que reina no mundo. E o vírus, sem excluir ninguém, encontrou grandes desigualdades e discriminações no seu caminho devastador. E aumentou-as!
Portanto, a resposta à pandemia é dupla. Por um lado, é essencial encontrar uma cura para um pequeno mas terrível vírus que põe o mundo inteiro de joelhos. Por outro, devemos curar um grande vírus, o da injustiça social, da desigualdade de oportunidades, da marginalização e da falta de proteção dos mais débeis. Nesta dupla resposta de cura há uma escolha que, segundo o Evangelho, não pode faltar: é a opção preferencial pelos pobres (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium [EG], 195). E esta não é uma opção política; nem sequer uma opção ideológica, uma opção de partidos. A opção preferencial pelos pobres está no centro do Evangelho. E quem a fez primeiro foi Jesus; ouvimos isto no trecho da Carta aos Coríntios, lido no início. Ele, sendo rico, fez-se pobre para nos enriquecer. Fez-se um de nós e por isso, no centro do Evangelho, no centro do anúncio de Jesus, há esta opção.
O próprio Cristo, que é Deus, despojou-se, fazendo-se semelhante aos homens; e não escolheu uma vida de privilégio, mas escolheu a condição de servo (cf. Fl 2, 6-7). Aniquilou-se a si mesmo fazendo-se servo. Nasceu numa família humilde e trabalhou como artesão. No início da sua pregação, anunciou que no Reino de Deus os pobres são bem-aventurados (cf. Mt 5, 3; Lc 6, 20; EG, 197). Estava no meio dos doentes, dos pobres e dos excluídos, mostrando-lhes o amor misericordioso de Deus (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2444). E muitas vezes foi julgado como homem impuro, porque cuidava dos doentes, dos leprosos, que segundo a lei da época, eram impuros. E Ele correu riscos por estar próximo dos pobres.
Por esta razão, os seguidores de Jesus reconhecem-se pela sua proximidade aos pobres, aos pequeninos, aos doentes, aos presos, aos excluídos, aos esquecidos, a quantos não têm comida nem roupa (cf. Mt 25, 31-36; CIC, 2443). Podemos ler aquele famoso parâmetro sobre o qual todos seremos julgados, todos seremos julgados. É Mateus, capítulo 25. Este é um critério-chave de autenticidade cristã (cf. Gl 2, 10; EG, 195). Alguns pensam erradamente que este amor preferencial pelos pobres é uma tarefa para poucos, mas na realidade é a missão de toda a Igreja, dizia São João Paulo II (cf. Enc. Sollicitudo rei socialis, 42). «Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus para a libertação e promoção dos pobres» (EG, 187).
A fé, a esperança e o amor impulsionam-nos necessariamente para esta preferência pelos mais necessitados (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspetos da “Teologia da Libertação”, [1984], cap. V), que vai além da assistência necessária (cf. EG, 198). Trata-se de caminhar juntos, deixando-se evangelizar por eles, que conhecem bem Cristo sofredor, deixando-nos “contagiar” pela sua experiência de salvação, sabedoria e criatividade (cf. ibid.). Partilhar com os pobres significa enriquecer-se uns aos outros. E se existem estruturas sociais doentes que lhes impedem de sonhar com o futuro, devemos trabalhar em conjunto para as curar, para as mudar (cf. ibid., 195). A isto conduz o amor de Cristo, que nos amou até ao extremo (cf. Jo 13, 1) e chega inclusive aos confins, às margens, às fronteiras existenciais. Trazer as periferias para o centro significa centrar as nossas vidas em Cristo, que «se fez pobre» por nós, a fim de nos enriquecer «através da sua pobreza» (2 Cor 8, 9; cf. Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferencia Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe [13 de maio de 2007], n. 3).
Estamos todos preocupados com as consequências sociais da pandemia. Todos. Muitos querem regressar à normalidade e retomar as atividades econômicas. É claro, mas esta “normalidade” não deve incluir injustiça social e degradação ambiental. A pandemia é uma crise e não se sai iguais de uma crise: ou saímos melhores ou saímos piores. Nós deveríamos sair melhores, para resolver as injustiças sociais e a degradação ambiental. Hoje temos uma oportunidade de construir algo diferente. Por exemplo, podemos fazer crescer uma economia de desenvolvimento integral dos pobres e não de assistencialismo. Com isto não pretendo condenar a assistência, as obras de assistência são importantes. Pensemos no voluntariado, que é uma das estruturas mais bonitas que a Igreja italiana possui. Mas devemos ir além e resolver os problemas que nos estimulam a fazer assistência. Uma economia que não recorra a remédios que na realidade envenenam a sociedade, tais como rendimentos dissociados da criação de empregos dignos (cf. EG, 204). Este tipo de lucro é dissociado da economia real, aquela que deveria beneficiar as pessoas comuns (cf. Enc. Laudato si' [LS], 109), e é também por vezes indiferente aos danos infligidos à casa comum. A opção preferencial pelos pobres, esta necessidade ética e social que vem do amor de Deus (cf. LS, 158), dá-nos o estímulo para pensar e conceber uma economia onde as pessoas, especialmente as mais pobres, estejam no centro. E também nos encoraja a projetar o tratamento do vírus, privilegiando quem tem mais necessidade. Seria triste se na vacina contra a Covid-19 fosse dada a prioridade aos mais ricos! Seria triste se esta vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação e não fosse universal e para todos. E que escândalo seria se toda a assistência econômica que estamos a observar - a maior parte dela com dinheiro público - se concentrasse no resgate das indústrias que não contribuem para a inclusão dos excluídos, para a promoção dos últimos, para o bem comum ou para o cuidado da criação (ibid.). Há critérios para escolher quais serão as indústrias que devem ser ajudadas: as que contribuem para a inclusão dos excluídos, para a promoção dos últimos, para o bem comum e para o cuidado da criação. Quatro critérios.
Se o vírus se voltar a intensificar num mundo injusto em relação aos pobres e aos vulneráveis, devemos mudar este mundo. Com o exemplo de Jesus, o médico do amor divino integral, isto é, da cura física, social e espiritual (cf. Jo 5, 6-9), - como era a cura que Jesus fazia - devemos agir agora, para curar as epidemias causadas por pequenos vírus invisíveis, e para curar as que são provocadas pelas grandes e visíveis injustiças sociais. Proponho que isto seja feito a partir do amor de Deus, colocando as periferias no centro e os últimos em primeiro lugar. Não esquecer aquele parâmetro sobre o qual seremos julgados, Mateus, capítulo 25. Ponhamo-lo em prática nesta retomada da epidemia. E a partir deste amor concreto, ancorado na esperança e fundado na fé, será possível um mundo mais saudável. Caso contrário, sairemos piores da crise. Que o Senhor nos ajude, nos conceda a força para sair melhores, respondendo às necessidades do mundo de hoje.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.08.2020
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